Recortes Contemporâneos | Curadoria e Curador
- Marisa Melo

- 22 de jul.
- 3 min de leitura
Atualizado: 17 de set.

“Obra não é o que o artista quis dizer, é o que resiste ao tempo.” A frase de Jean-Luc Nancy, filósofo francês, ilumina um ponto central no olhar curatorial: a difernça entre intenção e consistência. O que move um curador diante de um portfólio não é o volume de obras produzidas, mas o que se mantém coerente dentro delas. É a qualidade do pensamento visual, a integridade do gesto, a capacidade de produzir linguagem a partir de um repertório próprio.
Selecionar um artista para uma exposição, para uma galeria ou para uma feira não é uma decisão emocional. É um processo analítico, que exige leitura rigorosa de percurso, de escolhas materiais, de articulação conceitual e de potência discursiva. Curadores não buscam artistas que agradem, mas que sustentem um discurso. A obra precisa se justificar no campo formal, estético e ideativo, sem depender de explicações frágeis ou estratégias de validação externa.
O primeiro sinal de maturidade artística está na coerência do conjunto. Não se trata de repetir uma fórmula, mas de revelar identidade. Há artistas que transgridem suportes, mesclam mídias, mas mantêm uma linha de pensamento clara. Outros, por insegurança ou oportunismo, aderem a modismos, tentando alcançar visibilidade por meio de temas em alta ou efeitos visuais apelativos. Esse tipo de oscilação denuncia imaturidade e falta de compromisso com a linguagem.
O portfólio, nesse contexto, é mais do que um agrupamento de imagens. Ele deve evidenciar percurso, apresentar recortes sólidos, contextualizar séries, apontar processos. Textos autorais bem escritos, dados técnicos claros, imagens de qualidade e, principalmente, uma curadoria interna feita pelo próprio artista são determinantes. O curador não espera uma defesa teórica extensa, mas uma introdução precisa e honesta sobre as intenções que atravessam o trabalho.
COERÊNCIA
Coerência não é repetição, é profundidade. É quando cada escolha material, formal e conceitual revela um pensamento contínuo, mesmo que a superfície mude. O artista coerente não se prende ao estilo, mas à linguagem. Mantém o eixo mesmo ao se reinventar. E é essa linha que os curadores reconhecem: a que sustenta o trabalho como obra e não como acúmulo de tentativas.

Outro ponto fundamental é o entendimento do artista sobre o contexto onde deseja estar inserido. Muitos enviam materiais sem conhecer a linha da galeria, da mostra ou do espaço institucional. Essa falta de leitura revela desatenção estratégica. Um artista precisa compreender o ecossistema da arte contemporânea e saber onde sua obra pode dialogar de forma relevante. A ausência dessa consciência mina oportunidades.
Há também um valor inegociável: o comprometimento com o ofício. O artista que espera ser descoberto, que terceiriza sua trajetória, que depende de aprovação constante ou que se posiciona com arrogância tende a ser descartado rapidamente. Curadores buscam artistas que tenham autonomia intelectual, capacidade crítica e uma prática constante de refinamento. Não se trata de atingir um ponto de perfeição, mas de evidenciar um caminho em construção com rigor.
A escuta, para o curador, é uma ação visual. Ele lê camadas. Observa como o artista usa o espaço, como tensiona matéria, como lida com o tempo. Percebe quando há honestidade plástica e quando há simulação. Em tempos de saturação estética e pressa institucional, o que sustenta o interesse curatorial é o que sobrevive à superfície. E esse valor está, invariavelmente, associado à integridade da linguagem.

Para além da técnica, o artista precisa demonstrar leitura de mundo. Não basta produzir imagens impactantes, é preciso compreender o próprio gesto como parte de um campo maior, que envolve ética, história, crítica e sensibilidade política. A arte, nesse sentido, não é ilustração de ideias, mas construção de pensamento visual. A ausência dessa dimensão torna o trabalho vazio, decorativo ou reiterativo.
Ser selecionado por um curador não é sorte, é resultado de um trabalho que articula consistência com intenção. A obra precisa falar antes do artista. Precisa convocar o olhar sem recorrer a pirotecnias. Precisa, como dizia Nancy, resistir. Porque só resiste o que tem densidade, o que foi elaborado com tempo, o que se fez com alguma medida de verdade.
Marisa Melo


