O Contemporâneo e o Anacronismo | Recortes Contemporâneos
- Marisa Melo

- há 3 dias
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Ser contemporâneo é reconhecer que o tempo não avança em linha reta. O passado continua a pulsar no presente, e o novo só existe porque carrega fragmentos do que o antecede.

Na cena de De Chirico, o tempo não é medido, é sentido. As sombras longas, a arquitetura clássica e a vela distante criam um espaço onde o passado e o presente coexistem. Tudo parece recente e antigo ao mesmo tempo, como se a imagem habitasse um intervalo entre eras. Essa pintura metafísica encarna o anacronismo: o instante suspenso em que nada acontece, mas tudo persiste. É nesse tempo imóvel que o contemporâneo se reconhece.
Há épocas em que a arte parece avançar em linha reta, guiada por ideias de progresso, inovação ou ruptura. Outras vezes, ela se volta para o passado com olhar oblíquo, revisitando formas, memórias, gestos, vozes. O contemporâneo, não se define por uma cronologia, mas por um tipo de consciência temporal, um modo de ver o tempo como tecido descontínuo, permeado por retornos e lampejos.
Walter Benjamin, em suas Teses sobre o Conceito de História, sugere que o tempo histórico não é uma sucessão homogênea, mas um campo de interrupções. O “anjo da história”, empurrado para o futuro enquanto observa os destroços do passado, é talvez a imagem mais precisa da arte contemporânea: ela avança, mas de costas, consciente da ruína que a funda. “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi”, escreveu Benjamin, “significa apropriar-se de uma lembrança tal como ela relampeja no instante de um perigo.”
Giorgio Agamben, em O que é o Contemporâneo? Afirma que o contemporâneo é aquele que “mantém fixo o olhar em seu tempo para perceber não as luzes, mas o escuro.” Ser contemporâneo é perceber a distância entre os tempos, reconhecer que o presente está sempre em relação tensa com o que o precede e o que o sucede. Assim, toda obra verdadeiramente contemporânea é, de algum modo, anacrônica: nela, o passado irrompe como centelha que ilumina o agora.
Essa perspectiva se manifesta com clareza na arte visual recente. Artistas que trabalham com colagem, apropriação e reinterpretação de imagens antigas, operam sobre arquivos de memória. O gesto é anacrônico porque desloca o sentido original das imagens e as reinsere em outro tempo.
Quando Warburg organiza seu Atlas Mnemosyne no início do século XX, ele antecipa a lógica do pensamento contemporâneo: a justaposição de temporalidades distintas, o convívio entre o arcaico e o moderno, o eterno retorno de certas formas simbólicas.
Ser contemporâneo, não é produzir algo do tempo presente, mas sobre o tempo presente. O artista contemporâneo é aquele que percebe as falhas do tempo, que entende que nenhuma imagem pertence apenas ao seu momento de origem. Há sempre um eco, uma recorrência, um deslocamento. A pintura que cita o Renascimento, a instalação que reencena um mito antigo, a performance que revive um ritual, tudo isso evidencia que o contemporâneo opera entre o agora e o antes.
Há também ética nesse olhar anacrônico. Ao reabrir o passado, o artista interroga o que ficou fora da narrativa dominante. O anacronismo torna-se gesto político: reescrever a história a partir de lacunas, resgatar figuras esquecidas, imaginar futuros possíveis. É nessa dobra do tempo que se funda grande parte da arte do nosso século.
Georges Didi-Huberman amplia essa leitura ao afirmar que “o anacronismo é a condição do olhar histórico.” Ele é sintoma de que o olhar percebe os tempos em sobreposição. Uma pintura barroca pode ser mais atual que uma instalação tecnológica; um fragmento arqueológico pode nos comover mais que uma obra recém-feita. Tudo depende da potência de sua aparição no presente.
O contemporâneo, não é sinônimo de atualidade. É um modo de estar em descompasso com o próprio tempo, de habitá-lo de maneira crítica. O artista, o filósofo, o espectador contemporâneo são aqueles que suportam o atraso, o desajuste, a não-coincidência. Que olham para trás sem nostalgia e para frente sem ilusão.
Talvez por isso a arte contemporânea pareça, tantas vezes, inconclusa: porque ela não se deixa fixar em um tempo. É movimento de retorno e reinvenção, ruína e lampejo. O contemporâneo é, antes de tudo, o tempo que não passa.
Pensar o contemporâneo como anacrônico é libertar-se da ideia de linha e reconhecer a circularidade da experiência artística. Cada obra, ao surgir, convoca fantasmas e inaugura futuros. É nesse vaivém que a arte se mantém viva, entre o que ainda não chegou e o que não foi embora.
Marisa Melo
Recortes Contemporâneos é uma coluna de observação do tempo, entre a arte e a filosofia. Cada artigo procura compreender como a criação humana traduz a inquietude do existir e transforma o visível em pensamento.


