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Releitura: o que se renova quando o olhar retorna | Recortes Contemporâneos

Releitura é o gesto que reconstrói o passado no presente e faz da memória um campo de criação. Picasso, And Warhol e Vik Muniz mostraram que revisitar é reinventar, e que o tempo da arte é sempre o da transformação.




Vik Muniz produziu sua própria versão da Santa Ceia utilizando chocolate derretido
Vik Muniz produziu sua própria versão da Santa Ceia utilizando chocolate derretido

A releitura é uma forma de pensar o tempo e de confrontar a própria herança. Entre o desejo de preservar e o impulso de transformar, o artista encontra um campo fértil de reflexão, onde o olhar se torna também arqueologia.


Nietzsche afirmava que é preciso “interpretar para viver”. Na arte, essa interpretação constante é o que permite à tradição permanecer viva. O passado não é estático: ele se reconstrói a cada olhar. O ato de reler uma obra é também reler o próprio mundo. A criação se torna um exercício de continuidade e ruptura, uma tentativa de reorganizar a memória estética de acordo com a sensibilidade contemporânea.


Poucos compreenderam isso com tanta lucidez quanto Pablo Picasso, quando, em 1957, realizou sua série de variações sobre As Meninas de Diego Velázquez. Em mais de cinquenta telas, Picasso não copia a pintura barroca, a decompõe. Fragmenta a ordem de corte, altera a perspectiva, desloca o olhar da infanta para o próprio gesto de pintar. Picasso transforma o espaço da representação em laboratório da modernidade. Ele não refaz o passado: o reinterpreta como quem desmonta um relógio para compreender a engrenagem do tempo.



  Las Meninas (depois de Velázquez) (1957)
  Las Meninas (depois de Velázquez) (1957)

A principal e mais icônica releitura da série.

Picasso reorganiza a composição original de Velázquez, transformando-a em uma estrutura cubista e cromaticamente vibrante.



Outro exemplo emblemático é Andy Warhol, cuja obra Mona Lisa (Thirty Are Better Than One), de 1963, repete a imagem icônica de Leonardo da Vinci até esvaziá-la de sua aura original. A multiplicação da figura não é ironia gratuita, mas comentário profundo sobre o estatuto da imagem na cultura de massa. Warhol transforma a reverência em banalidade, e nessa banalidade encontra um novo sentido. Sua releitura é política: revela o poder da reprodução como sintoma do século XX. Ao replicar a Gioconda, ele mostra que o mito artístico também pode se tornar mercadoria.




Andy Warhol_Mona Lisa (Thirty Are Better Than One), de 1963
Andy Warhol_Mona Lisa (Thirty Are Better Than One), de 1963


Mas talvez nenhuma obra tenha inspirado tantas releituras quanto A Última Ceia, de Leonardo da Vinci. Desde o século XX, esse ícone da pintura ocidental foi reinterpretado de inúmeras formas, revelando como cada época lê seus símbolos de fé e convivência. Salvador Dalí, em A Última Ceia (1955), transforma o episódio bíblico em experiência mística e matemática. O espaço cúbico que envolve Cristo e os apóstolos é uma arquitetura transparente, onde a geometria se torna instrumento do sagrado. Dalí não apenas relê Leonardo: ele reinterpreta a espiritualidade através da linguagem da ciência, buscando harmonia entre razão e transcendência.




Salvador Dalí_A Última Ceia (1955)
Salvador Dalí_A Última Ceia (1955)


Décadas depois, Andy Warhol voltaria à mesma cena em sua série The Last Supper (1986), criada pouco antes de sua morte. Ao imprimir o rosto de Cristo e os apóstolos sobre fundos fluorescentes, Warhol transfere a cena da fé para a cultura pop. O sagrado, revestido de cor industrial, torna-se produto. Sua releitura é ambígua: celebra e critica a transformação da fé em imagem pública.



Andy Warhol_ série The Last Supper (1986)
Andy Warhol_ série The Last Supper (1986)

Essas três versões de Pícasso, Dalí e Andy Warhol, mostram como uma mesma referência pode gerar universos distintos. A releitura, nesses casos, não é apenas estética, mas filosófica: cada artista questiona o sentido do que é sagrado em seu tempo. Picasso transforma o clássico em pensamento visual, desconstruindo a tradição para compreender sua estrutura; Dalí espiritualiza a razão, unindo ciência e fé em um mesmo espaço; Warhol seculariza a fé, convertendo o ícone em imagem de consumo. Em todos eles, a releitura é um modo de pensar o tempo, o instante em que o passado se renova para continuar dizendo algo ao presente.


No campo da filosofia, a releitura encontra paralelo nas ideias de Walter Benjamin, para quem o tempo histórico é feito de estilhaços. Nada permanece intacto; tudo precisa ser reconfigurado para que volte a significar. Benjamin dizia que “o verdadeiro historiador é aquele que acende uma centelha de esperança no passado”. O mesmo vale para o artista: sua releitura é uma centelha que ilumina o que ainda pode ser dito por imagens antigas.


A releitura, é o reconhecimento de que a criação é sempre um diálogo com o que já foi visto. Ao reinterpretar, o artista interroga a origem e, ao mesmo tempo, a atualiza. Cada nova versão é também um comentário sobre o presente, sobre as formas de poder, de crença e de verdade que sustentam nossa época.


O poder da releitura está em transformar a memória em linguagem. É o gesto de quem compreende que toda criação é feita sobre ruínas, e que o novo não nasce do nada, mas do que ainda pulsa no que já foi. Reler é escutar o tempo com os olhos. É transformar a herança em horizonte.



Marisa Melo



Recortes Contemporâneos é uma coluna de observação do tempo, entre a arte e a filosofia. Cada artigo procura compreender como a criação humana traduz a inquietude do existir e transforma o visível em pensamento.

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