Recortes Contemporâneos | O corpo da linguagem: pensar arte a partir de “A Enciclopédia de Istambul”
- Marisa Melo

- 17 de jul.
- 3 min de leitura
Atualizado: 17 de set.

A arte nasce do deslocamento. Não apenas do corpo, mas da percepção. Um artista que se pretende contemporâneo precisa entender o entorno como matéria e o tempo como tensão. A Enciclopédia de Istambul pode ser vista como um exercício de transposição, onde cada imagem urbana se transforma em dobra de subjetividade. É nesse sentido que a série se oferece como referência para pensar a arte como reorganização dos códigos que nos constituem. O artista encontra nela não uma história a ser narrada, mas um modo que questiona onde termina o mundo e onde começa sua linguagem.
A minissérie de Selman Nacar, dirigida por Umut Aral, evita atalhos dramáticos e constrói sua força nas fissuras. Em vez de personagens lineares, temos percursos interrompidos, zonas de hesitação. Zehra e Nesrin não evoluem, atritam. Zehra, jovem que migra para Istambul a fim de estudar arquitetura, carrega em sua mala mais do que roupas. Leva o peso de ser mulher em um território que ainda exige performance. Ao longo da série, hesita sobre o uso do véu, não por falta de convicção, mas por excesso de pressões. Algumas escolhas que faz, inclusive, não são suas. São do meio que a cerca, da sociedade que cobra, da cidade que absorve.
Zehra percorre a cidade de mala em punho por quase toda a narrativa. No fim, reconhece-se nela. Não porque a mala seja símbolo de movimento, mas porque ela se tornou aquilo que precisou conter. O corpo da personagem se converte em território. E como todo território, carrega invasões, resistências, geografias que se movem.
Nesrin, médica de renome, deseja o oposto. Não carregar, mas esvaziar. Busca renúncia como tentativa de reescrita. Não foge do passado, mas se recusa a repeti-lo. Istambul, que antes significava conquista, torna-se claustro. O prestígio e o rigor da vida construída sob ordem alheia se desfazem quando a pergunta irrompe: o que foi sacrificado para se chegar até aqui?
O encontro entre essas duas mulheres não é explícito, mas se estabelece em frequência. O tempo da série não é cronológico, é vibracional. Elas não dialogam diretamente, mas compartilham a condição de estar em uma cidade que não permite neutralidade. Em Istambul, como em qualquer metrópole, as escolhas carregam implicações, afetivas, políticas. Para quem cria, esse campo é inevitável.
A arte não pode mais ser pensada apenas como gesto individual. Ela opera entre estruturas. A cidade, nesse caso, é linguagem. Seus ritmos, seus ruídos e silêncios definem o que pode ou não ser partilhado. O artista atento percebe que cada esquina guarda uma decisão. O que Zehra e Nesrin vivem não é uma história. É uma fratura. É essa condição que interessa à arte contemporânea.
A série recusa soluções fáceis. Não se trata de encontrar respostas, mas de insistir em caminhar. E é isso que a arte, quando é plena, realiza: acende zonas de sombra. Permite que a dúvida seja forma. Oferece ao outro uma arquitetura possível de pensamento. Ao final, a cidade permanece. Mas algo foi alterado no modo como nos movemos por ela.
A Enciclopédia de Istambul é, nesse contexto, uma reflexão visual sobre a linguagem como arquitetura. O artista que se propõe a pensar sua obra no presente pode aprender com essa construção: o que importa não é onde estamos, mas o que fazemos com o que nos cerca. A cidade, como a arte, não nos salva. Mas pode nos mostrar aquilo que estamos prestes a abandonar.


