Monalisa do Sertão: entre o mito renascentista e a mulher da terra vermelha
- Marisa Melo

- 20 de out. de 2023
- 2 min de leitura
Atualizado: 18 de set.
“Uma obra de arte deve ser ao mesmo tempo fruto de seu tempo e uma resposta à eternidade.” A frase de Schiller poderia ser a chave de leitura da pintura Monalisa do Sertão, de Andrea Mariano. Ao revisitar um dos maiores ícones da história da arte, a artista paraibana o reconfigura dentro da sua paisagem cultural, trazendo à cena uma afirmação de identidade.

Há imagens que não se acomodam no tempo. Elas retornam como fragmentos indomesticáveis, deslocando sentidos e forçando novas leituras. A Monalisa do Sertão, de Andrea Mariano, é uma dessas imagens. Ao trazer para a terra vermelha do Nordeste o rosto mais celebrado do Renascimento, a artista o reinventa, transformando-o em outro corpo, em outra narrativa, em outro gesto de afirmação.
Andrea Mariano nasceu na Paraíba e fez da sua própria experiência o alicerce de sua obra. Autodidata na pintura, percorreu três décadas de carreira com disciplina, guiada por um olhar que se alimenta da literatura, do cinema, da música, da moda e da memória cultural de sua terra. Sua formação acadêmica em áreas diversas; Direito, Marketing, Enfermagem e Administração Hospitalar compõe um mosaico que a distancia de qualquer linearidade. “É da minha cidade que retiro cores, histórias e ironias”, afirma a artista, resumindo o modo como incorpora a Paraíba em sua produção. Hoje, ao lado do ateliê e das telas, Andrea ocupa também uma cadeira na Academia de Letras e Arte de Princesa Isabel, reafirmando seu lugar no circuito cultural.
Na obra, o sorriso renascentista ganha a rudeza do chapéu de couro, o silêncio do cacto e a intensidade dos vermelhos que lembram barro aquecido. O rosto feminino se impõe como presença concreta, marcada pela força da terra e pela memória de um povo. Andrea recusa o sfumato delicado de Leonardo e prefere linhas afirmadas, pinceladas diretas, cores saturadas que não pedem mediação. A imagem não se oferece como réplica, mas como criação de uma nova gramática visual.
Seu estilo se define por essa coragem cromática. Os fundos carregados de ocres e vermelhos estabelecem densidade, enquanto verdes e azuis inserem rupturas que abrem a cena. O desenho permanece visível, não dissolve formas, não suaviza contornos. A clareza do gesto traduz um modo de ver que assume as marcas do pincel como parte da linguagem. O humor também se insinua: há ironia ao imaginar a musa europeia transformada em mulher sertaneja, cercada por signos de uma cultura tantas vezes marginalizada pela história da arte.
Mas é justamente nesse deslocamento que a obra adquire força filosófica. A Monalisa do Sertão não parodia nem reverencia; ela abre outra trilha. O mito europeu perde seu caráter exclusivo e passa a coexistir com símbolos de uma geografia esquecida, convertendo-se em metáfora de como imagens universais podem ser reinventadas a partir da periferia. A tela, ao mesmo tempo, revela a dureza do chão árido e a capacidade de criar beleza em meio à escassez.
Concluir a leitura da Monalisa do Sertão é reconhecer como a arte pode deslocar fronteiras. A obra nos lembra que a história da arte não está encerrada em seus cânones, mas se reabre cada vez que alguém decide olhar de outro lugar e criar a partir dele.


