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Cirlete Knupp: ciclos do olhar, respiração da matéria

  • Foto do escritor: Marisa Melo
    Marisa Melo
  • 29 de nov.
  • 7 min de leitura
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Cirlete Knupp nasceu no Rio de Janeiro em 1959 e carrega desde cedo uma relação íntima com a imagem. Sua primeira pintura, uma árvore, permanece em sua casa como marca daquilo que viria a ser seu caminho artístico. Um sinal claro da sensibilidade que já intuía o que a natureza podia revelar quando observada com atenção. Essa obra inicial antecede tudo o que viria depois e, de certo modo, orienta a maneira como Cirlete se aproxima da cor, da matéria e das formas que florescem silenciosamente no mundo natural.


Formada em Matemática, desenvolveu desde jovem uma disciplina precisa que, longe de limitar sua expressão, se tornou estrutura para o modo como organiza suas telas. Quando iniciou seus estudos de pintura, encontrou um território onde a racionalidade podia conviver com o impulso instintivo. Estudou com Eliane Pasquette, participou de processos de mentoria, integrou grupos de pesquisa estética e buscou formação contínua em instituições voltadas ao desenvolvimento técnico e conceitual.

Sua trajetória não nasce de rupturas, mas de uma construção firme, elaborada com constância.



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Cirlete trabalha com acrílica, óleo e técnica mista, explorando combinações de materiais que lhe permitem criar superfícies densas, relevos sutis e regiões onde a cor parece respirar. Nada em sua prática é arbitrário. Cada camada tem função, cada textura carrega um sentido, cada contraste é resultado de experimentação cuidadosa. Sua paleta transita entre tons terrosos, verdes profundos, amarelos maduros, azuis intensos e ocres quentes que remetem aos ciclos naturais que a inspiram desde a primeira tela. Há um equilíbrio entre luminosidade e sombra, entre cores expansivas e tons quietos, sempre organizados com atenção ao ritmo interno da pintura.



Sua técnica mista se destaca pela combinação entre massa, pigmentos, acrílicos, óleo e elementos de textura que criam camadas sensoriais. A artista domina os materiais de modo a permitir que cada obra encontre sua própria estrutura. Suas telas carregam relevos que se evidenciam sob a luz, sulcos que sugerem raízes, áreas polidas que remetem à água, superfícies rugosas que lembram troncos e terrenos ancestrais. É uma pintura que pede aproximação, que solicita leitura tátil e que não se esgota na primeira visão.


Sua pesquisa visual se organiza em séries que aprofundam temas recorrentes como matéria, ciclo, fluxo, memória natural e humanidade. Mesmo quando migra para a figura humana, como no conjunto dos cem rostos apresentados em Houston, mantém o mesmo cuidado estrutural que define sua pintura. O rosto não aparece como retrato convencional, mas como forma que carrega marcas internas, assim como uma árvore carrega marcas do tempo. Essa continuidade entre universos distintos revela a força de sua identidade.


Ao longo de mais de vinte anos, Cirlete construiu uma obra que amadurece com coerência. Participou de exposições no Brasil, Áustria, Alemanha e Estados Unidos, recebeu premiações em salões de arte e consolidou um percurso marcado por domínio técnico e persistência. Sua paleta, seu gesto e sua maneira de lidar com a matéria refletem o mesmo impulso que a guiou quando pintou sua primeira árvore: a vontade de compreender o que se transforma lentamente e o que se revela apenas a quem sabe olhar.



Séries






I. Natureza Estrutural: o corpo da floresta e a arquitetura da matéria


A série Natureza Estrutural apresenta a artista em seu eixo mais profundo. Obras como Memórias do Tronco, Pele das Folhas, Raízes da Terra, Pureza do Ar e Pilar da Floresta formam um conjunto em que matéria e gesto se tornam inseparáveis. Cirlete trabalha com camadas densas, massas, relevos e regiões que parecem carregadas de tempo.


Cada espessura sugere a idade daquilo que representa, como se o tronco carregasse em si a memória de tudo o que já sustentou. Em Pele das Folhas, nuances cromáticas criam uma vibração tátil que se aproxima da experiência direta com o vegetal. A artista não tenta imitar a aparência das folhas. Ela procura a sensação que se sente ao se aproximar delas, aquela mistura de leveza e resistência que só o contato revela. Já em Raízes da Terra, o movimento subterrâneo é trazido para a superfície, como se a tela abrisse espaço para algo que normalmente não vemos, mas que estrutura a vida de forma decisiva.


Essa série revela uma artista que entende a natureza como corpo. Nas camadas de tinta, percebe-se a permanência das coisas vivas, mas também o desgaste, o envelhecimento, a sedimentação. A primeira árvore pintada na juventude ecoa discretamente, não como imagem, mas como formação de olhar. Essa árvore inicial ensinou Cirlete a registrar o que cresce devagar. A série inteira carrega essa lição.






II. Ciclos e Transformações: quando a cor organiza o ritmo da vida


Na série Ciclos e Transformações, a natureza deixa de ser estrutura e passa a ser fluxo. Obras como Ciclo, Longevidade, Renovação, Uma Nova Vida, Caminho das Águas e Caminhos Dourados revelam uma artista mais solta, mais aberta ao improviso controlado, mais sensível aos movimentos internos da paisagem. A paleta se expande e a luz entra como protagonista. A água não é representada, mas sentida. O tempo não é medido, mas percebido nas transições cromáticas.


Em Caminho das Águas, o fluxo aparece não porque a artista pinta ondas, mas porque ela cria um campo visual onde as manchas parecem se mover. A cor se desloca, se reorganiza, se propaga. Já em Caminhos Dourados, o amarelo intenso cria uma sensação de calor e maturidade que remete ao ciclo da luz nos finais de tarde. Longevidade e Renovação tratam da vida em suas etapas, não por narrativas explícitas, mas por ritmos internos que sugerem continuidade.


Essa série mostra Cirlete em equilíbrio. Ela não abdica da técnica, mas também não a usa como amarra. A fluidez do gesto revela confiança. Cada cor ocupa o espaço certo, como se a artista estivesse escutando o tempo do próprio tema. Essa capacidade de acompanhar o ritmo da natureza, sem querer domá-la, é uma das marcas que tornam seu trabalho reconhecível.



III. Rostos | 1000 Faces: a humanidade que emerge da matéria simples


A série dos cem rostos, criada para o The Silos em Houston, introduz uma mudança significativa na obra da artista. Cirlete troca o mundo vegetal pela figura humana, mas mantém o mesmo compromisso com a verdade da matéria. Escolher o papelão como suporte foi uma decisão estética que reforça a força do conjunto. O rosto nasce do simples, do descartável, do cotidiano. E, justamente por isso, ganha intensidade.


As faces não são retratos no sentido convencional. Elas surgem como vestígios emocionais, como estados internos pintados no instante. Algumas carregam delicadeza, outras têm dureza, outras parecem se dissolver ou se recompor. A artista começa observando pessoas reais, mas rapidamente abandona essa referência e se entrega ao imaginário. O rosto passa a ser porta de entrada para algo mais amplo: a pluralidade humana.


O conjunto funciona como mosaico. Quando reunidos, os cem rostos criam uma espécie de coro visual que fala da diversidade e da singularidade de cada indivíduo. E, ao mesmo tempo, revelam o olhar da artista, que se desloca da natureza para o humano sem ruptura. A mesma percepção que identifica sutilezas no tronco é a que identifica nuances em um olhar. A mesma atenção ao ciclo das águas é a que reconhece variações de expressão.


Essa série mostra que Cirlete cresceu como artista não apenas no domínio da técnica, mas no entendimento da vida. Ela percebe que o humano também se forma por camadas, também carrega marcas, também se transforma. É uma expansão coerente de sua poética.





A trajetória de Cirlete Knupp revela uma artista que trabalha com profundidade, constância e verdade. Suas séries não se contradizem. Elas se complementam. Da árvore inicial aos troncos mais densos, das folhas às águas, das raízes aos rostos, tudo se organiza como processo de crescimento. A artista não busca efeitos imediatos. Ela constrói por estratos, como se cada pintura fosse terreno fértil onde novas percepções podem germinar.


Ao longo dos anos, Cirlete ampliou sua atenção às superfícies, aprofundando o uso de materiais e descobrindo como cada camada pode dialogar com a seguinte. As primeiras obras, embora marcadas pela delicadeza do olhar jovem, já apontavam para um interesse pela espessura e pela solidez dos elementos naturais. Com o tempo, essa sensibilidade se desdobrou em pesquisa de textura, luz e profundidade. A artista aprendeu a usar a técnica mista para reforçar esse território, criando áreas que parecem brotar, fissurar, expandir ou repousar. Essa evolução não apagou a origem, apenas a expandiu em direção a um vocabulário mais maduro, consciente e amplo.


O mesmo percurso se percebe na relação com a cor. Se no início predominavam tonalidades mais contidas, próximas da terra e das fibras vegetais, a paleta se abriu gradualmente para azuis vigorosos, amarelos luminosos, vermelhos terrosos e verdes que dialogam com luz filtrada. Esse movimento mostra uma artista que, ao longo dos anos, ousou mais, sem perder delicadeza. A cor se tornou ferramenta de atmosfera, estrutura e ritmo. Em vez de ocupar a tela como simples preenchimento, ela passou a organizar a circulação interna da obra, o modo como o olhar entra, se desloca e permanece. Essa mudança revela não apenas domínio técnico, mas também ampliação emocional e sensorial.


Com essa maturação, Cirlete encontrou espaço para se deslocar da natureza para a figura humana sem perder identidade. O conjunto dos cem rostos mostra esse amadurecimento de forma clara. A liberdade que conquistou na textura e na cor se traduziu em expressões que surgem do gesto, sem rigidez. A artista percebeu que seu método, antes dedicado ao vegetal e aos ciclos naturais, também poderia iluminar o humano. Esse passo evidencia a força de sua evolução: cada fase nasce da anterior, cada série amplia o que já existia, cada risco carrega uma linhagem que começa naquela primeira árvore guardada até hoje.


Essa coerência acumulada faz com que sua obra, vista em conjunto, pareça respirar em continuidade. Não há ruptura brusca, há ampliação. Não há abandono de temas, há desdobramento. A artista cresceu com sua pintura, e a pintura cresceu com ela. Por isso, seu percurso não se fragmenta com o passar do tempo, mas se adensa. Cada série acrescenta novas camadas ao que já estava ali, permitindo que seu trabalho alcance maturidade sem perder frescor.



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