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Arte e identidade sem folclorização

  • Foto do escritor: Marisa Melo
    Marisa Melo
  • 29 de nov.
  • 3 min de leitura
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Ao olhar para “The Firmament”, de Toyin Ojih Odutola, fico sempre presa no modo como a figura parece estar presente e, ao mesmo tempo, guardada em si. As linhas que compõem o rosto criam uma superfície que não se deixa traduzir de imediato. A artista não tenta explicar quem aquela pessoa é, nem reduz a imagem a um conjunto de marcas culturais facilmente reconhecíveis. Ela mostra algo que pertence ao íntimo, algo que se forma devagar. Há profundidade no rosto, não porque ele é dramático, mas porque não se fecha. A imagem não entrega um retrato, ela abre uma pergunta.


Esse retrato me faz lembrar de Stuart Hall, quando ele insistia que identidade não é um ponto de partida, é um caminho que se redesenha. A figura de Odutola afirma exatamente isso. Não existe um traço único que defina quem está ali. Existe convivência de influências, de memórias, de silêncios. A artista não usa símbolos óbvios, não se apoia em detalhes que serviriam como sinalização rápida. Ela permite que a imagem tenha complexidade, como se dissesse que ninguém pode ser resumido a um marcador visual confortável.


Penso também em Paul Ricoeur quando ele fala do modo como criamos nossa própria história. Ele diz que identidade depende das interpretações que fazemos de nós mesmos ao longo do tempo. A pintura conversa com essa ideia. O rosto construído linha por linha parece carregar escolhas, hesitações, acontecimentos que não são visíveis, mas existem. O que vemos é apenas um recorte, nunca o todo. Há algo que permanece opaco, e essa opacidade dá ao retrato uma honestidade que faz falta em muitas imagens que tentam retratar culturas.


É justamente aí que a folclorização se distancia. Ela simplifica. Ela recorta uma cultura até restarem apenas elementos que caem bem numa vitrine. Ela transforma diferenças em decorações previsíveis. O retrato de Odutola faz o oposto. Ele afirma que cada pessoa é maior do que seus traços, maior do que as categorias que tentam organizá-la. Ele mostra que identidade não cabe em um conjunto de cores típicas ou em uma estética pronta. A figura está ali com quietude, com densidade, com um tipo de reserva que impede qualquer leitura apressada.


Nos últimos anos, tenho visto muitos artistas buscando esse tipo de construção, mais contida, mais consciente das armadilhas que transformam identidade em produto. Eles exploram nuances, pequenos desvios, escolhas que nascem de dentro. Não precisam de ornamentos para falar de onde vêm. Não precisam reforçar regionalismos para que seu trabalho tenha força. A identidade aparece de outros modos, mais discretos, mais profundos, às vezes quase imperceptíveis.


O público também muda. Aos poucos, cresce uma recusa em relação a imagens que repetem padrões culturais de maneira previsível. Há um interesse maior por obras que tratam identidade como algo vivo, algo que se sente nas escolhas de cada artista. O retrato de Odutola toca esse ponto. Ele convida à aproximação, mas não se oferece como tradução. Ele não tenta representar um grupo. Ele mostra uma pessoa, e ao mostrar essa pessoa permite que pensemos sobre o que nos forma.


Quando uma imagem assim circula fora de seu contexto original, ela não perde sentido. Ela não depende de referências específicas para que possamos percebê-la. Isso acontece porque a artista não usa identidade como rótulo. Ela transforma a experiência em forma, em cor, em textura. É isso que afasta qualquer risco de interpretação folclórica. A obra não pede reconhecimento imediato. Ela pede atenção.


A identidade continua importante, talvez mais do que antes. Mas encontra outros modos de aparecer. Ela surge nos detalhes, nas escolhas, nas contradições. Surge na maneira como uma figura ocupa o espaço, no modo como uma cor se repete, no desvio de um traço. A pintura de Odutola mostra que o que nos define raramente está no visível imediato. Identidade é aquilo que não cabe numa fórmula.


E é por isso que obras assim permanecem. Elas lembram que ninguém pode ser explicado por completo. Lembram que cultura não é enfeite. Lembram que cada vida tem uma espessura que escapa à facilidade das classificações. A arte que entende isso não representa identidades. Ela revela o quanto elas são vivas.

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