O que é real quando a arte pensa
- Marisa Melo

- há 3 dias
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Atualizado: há 2 dias

da palavra, do raciocínio organizado e da forma verbal que tenta capturar o mundo, existe uma inteligência nas imagens. Ela opera como pensamento em gestação, um modo de ver que não passa pelo discurso, mas pelo sensível. Platão dizia que o belo era o caminho mais alto para o conhecimento. Aristóteles, ao contrário, via na arte uma imitação que revela mais do que copia. Para ele, o real não era apenas aquilo que existe, mas aquilo que pode ser compreendido pelo gesto poético. A arte pensa não porque explica o mundo, mas porque o reorganiza em outro plano, o da possibilidade.
Quando uma pintura se organiza no espaço, quando um corpo em cena se desloca, quando uma instalação constrói relações entre luz e tempo, algo está sendo pensado. Mas esse pensamento não nasce como conceito. Ele surge como intuição, ritmo, forma que interroga. Georges Didi-Huberman chama isso de pensar por imagens. A imagem não é espelho do real, é estrutura ativa que pensa tanto pelo que mostra quanto pelo que retém. O que se mostra aparece sempre de forma parcial. O que se retém acumula força latente.
Esse modo de pensar antecede o conceito porque se faz na experiência. Antes de dizer o que o mundo é, a arte o sente. Quando a filosofia se aproxima da arte, precisa suspender parte de sua lógica para reconhecer esse outro tipo de verdade, uma verdade que não depende de provas, mas de intensidades visuais, táteis e temporais. É nesse ponto que a arte revela uma forma própria de saber. Um saber que não explica, mas ilumina.
Pensemos numa obra de James Turrell. Um espaço de luz em que o corpo é convocado a perceber o invisível. Não há argumento, há pensamento encarnado na experiência da cor e da profundidade. O espectador não compreende, ele sente pensar. Algo semelhante ocorre nas pinturas de Agnes Martin, onde o gesto mínimo e repetido se transforma em estado de atenção prolongada. Ou em Adriana Varejão, quando o azulejo se abre em carne e a história colonial aparece como ferida pictórica. Em todos esses casos, o pensamento não se dá em palavras. Ele acontece como vibração visual, como imagem que pensa o real sem nomeá-lo.
O pensamento da arte antecede o juízo porque é corporal. Ele nasce do contato entre o olhar e a matéria, do atrito entre o visível e aquilo que se oculta. As imagens pensam não porque carregam ideias, mas porque tornam visível a própria operação do ver. A arte se configura, assim, como uma experiência filosófica em que o pensamento se manifesta pela forma, não pelo discurso.
Nesse contexto, a realidade deixa de ser dado fixo. O real se mostra como algo em deslocamento contínuo, que se redefine a cada encontro entre obra e olhar. Quando a arte pensa, o real perde estabilidade. Ele se reorganiza no instante em que o artista escolhe um tom, define uma escala, constrói um espaço. A arte cria realidades possíveis, não para escapar do mundo, mas para devolvê-lo sob outra perspectiva. Como se dissesse, olhe de novo, há mais do que parece.
Essa capacidade de pensar o real é o que mantém a arte em diálogo com a filosofia. Enquanto o filósofo busca a essência, o artista trabalha com o intervalo, com aquilo que ainda está em formação. Talvez por isso o pensamento artístico se aproxime mais do tempo do sonho do que do tempo da razão. No sonho, as imagens se articulam por deslocamentos e associações, estruturas que também organizam a criação artística.
Aristóteles afirmava que o prazer da arte nasce do reconhecimento, aprendemos quando percebemos a semelhança entre imagem e mundo. A arte contemporânea, no entanto, propõe outro tipo de prazer, o de não reconhecer imediatamente. Ao suspender o familiar, ela obriga o pensamento a se mover. Essa suspensão produz um intervalo entre o que vemos e o que sabemos, entre o que sentimos e o que conseguimos dizer.
Quando a arte pensa, o real deixa de ser substância e passa a ser relação. Ele acontece entre obra e olhar, entre artista e mundo, entre forma e tempo. Cada obra é uma hipótese sobre o real, uma tentativa de organizar aquilo que resiste à fixação. Nesse sentido, a arte não é espelho nem fuga, é pensamento que se constrói nas margens.
Talvez a lição seja simples e exigente ao mesmo tempo. O pensamento mais profundo costuma aparecer antes da palavra. Pintura, escultura, fotografia e vídeo não pensam por falta de linguagem, pensam porque operam em outra gramática, a do sensível. O artista pensa com a cor, com o som, com o gesto. A filosofia, ao se aproximar desse pensamento, precisa reaprender a olhar.
Quando a arte pensa, o real se abre em camadas. Já não é superfície, é relação contínua. O artista, como o filósofo, não procura a verdade, procura um modo de habitá-la. O pensamento visual é essa habitação, uma forma de permanecer no enigma e aceitar que o mundo só se deixa compreender quando o olhamos com olhos ainda em formação.
A arte pensa antes do conceito porque pensa com o corpo, com o tempo e com a matéria. E talvez resida aí sua força filosófica mais duradoura, lembrar que o real não está dado, mas em constante invenção.
Este texto integra a coluna Recortes Contemporâneos.








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