Gualton Remo: cartografias sensíveis de um Recife abstrato
- Marisa Melo

- 1 de nov. de 2023
- 2 min de leitura
Atualizado: 16 de mai.

As obras de Gualton Remo não se contemplam de relance. Elas exigem tempo. Exigem aproximação. Cada tela é uma superfície pulsante onde a cor se comporta como matéria viva e o traço ganha espessura simbólica. Nascido no Recife e hoje residente em Porto de Galinhas, o artista autodidata carrega em suas composições uma memória gráfica do mundo que o cerca, filtrada por uma linguagem pessoal que mistura gesto, cor e ritmo visual em uma cadência quase urbana.
Desde cedo, Gualton encontrou no desenho uma forma de permanência no mundo. Aos sete anos, foi premiado em um concurso escolar, e esse gesto de reconhecimento, aparentemente simples, acendeu nele uma chama que jamais se apagou. A bolsa que conquistou na Escola de Belas Artes de Pernambuco aprofundou sua formação, mas não sufocou sua espontaneidade, ao contrário, refinou o gesto sem jamais aprisioná-lo.
O que salta aos olhos em sua pintura é a honestidade do fazer. Há algo de artesanal, quase musical, em suas composições, como se ele tocasse o espaço com pinceladas que lembram partituras visuais. A presença de grades, linhas, padrões geométricos interrompidos, colagens, inscrições, manchas e sobreposições dá à obra uma densidade rítmica que lembra a cidade. Como se Recife estivesse ali, não como paisagem figurativa, mas como energia plástica.
Sua paleta é vigorosa, feita de vermelhos pulsantes, verdes que vibram, amarelos solares, azuis densos e pretos que delimitam e tensionam o espaço. O uso da textura, dos relevos, da colagem e das repetições de símbolos desenhados à mão remete a uma arqueologia subjetiva. Gualton constrói mapas, mas não de localização. São mapas de afetos, de vivências, de trânsito. Não por acaso, suas obras parecem em constante movimento, como se a cidade estivesse sempre sendo reinventada ali, sob nossos olhos.
As telas sugerem bairros, blocos, ruas, ruídos, memórias de paredes pintadas e descascadas. Não há literalidade, mas há um pertencimento. E isso confere à sua obra uma potência rara: a de fazer com que o espectador sinta, antes de entender. Seus trabalhos não querem ser compreendidos de forma lógica. Eles se oferecem como enigmas visuais, fragmentos de um código afetivo que escapa à tradução imediata.
Há também uma espécie de caligrafia própria, quase um grafismo inventado, que se repete de quadro em quadro. Esse elemento aproxima sua obra de linguagens ancestrais e ao mesmo tempo contemporâneas, remetendo tanto à arte popular quanto à arte urbana. É como se Gualton escrevesse no espaço, usando a tela como suporte para uma escrita que mistura pintura, memória e intuição.
Gualton Remo não pinta para explicar, ele pinta como quem escava. Suas composições nascem de uma urgência silenciosa, de um gesto que tenta registrar o que se vive mas ainda não se nomeia. Em tempos de imagens rápidas e discursos fáceis, sua pintura convida o olhar a permanecer. Ela carrega um Recife reinventado, uma abstração que pulsa como cidade, um desenho que escorre como memória, atravessando história e espiritualidade.












