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Recortes Contemporâneos | Conceito de referencialidade

Atualizado: 17 de set.

Mazé Andrade_ projeto Mata Atlântica
Mazé Andrade_ projeto Mata Atlântica


“A arte começa onde as palavras param”, escreveu Joseph Beuys, apontando não um vazio de linguagem, mas a saturação do discurso diante do que não se deixa nomear. Essa formulação não nega o sentido, tampouco o elimina. Apenas desloca a confiança que se costuma depositar na explicação. O que se instaura no lugar da palavra é a imagem, o corpo, a matéria em tensão. E nesse campo sensível, é possível observar como determinados artistas não operam por referência ao mundo exterior, mas por imersão em um campo interno, onde a criação nasce daquilo que ainda não cessou de vibrar.


Trata-se de um modo de trabalhar que não responde ao tema nem ao repertório formal. A construção da obra é atravessada por memórias que não foram absorvidas, experiências que não se converteram em discurso, estados que não se estabilizaram. O artista não parte do que sabe. Parte do que resiste em ser esquecido. O gesto técnico não busca representar. Ele organiza o que permanece sem forma. A imagem que nasce desse processo não tem a função de comunicar, mas de sustentar.



Mazé Andrade - Projeto Mata Atlântica_ A mata e o imaginário popular
Mazé Andrade - Projeto Mata Atlântica_ A mata e o imaginário popular

É comum que certos elementos visuais retornem com frequência nesse tipo de produção. Formas recorrentes, cores específicas, figuras que reaparecem em diferentes composições. Isso não caracteriza estilo nem sistema. Essa repetição responde à necessidade de manter em visibilidade algo que ainda está sendo atravessado. A obra não se completa. Ela acompanha. O que se apresenta ao público não é o fechamento de um ciclo, mas uma dobra a mais no processo.


Essa criação não se oferece ao mercado como objeto decorativo, nem se reduz a comentário institucional. Também não se define como denúncia. Ela ocupa um lugar mais difícil de localizar, pois sua origem não está no enunciado, mas na matéria afetiva do próprio corpo. O que se vê é o reflexo de uma escuta interna, que por vezes se torna imagem, por vezes mancha, por vezes ruído. O sentido se constrói no atrito entre aquilo que a obra expõe e o que o espectador é capaz de suportar.


A técnica, nesse contexto, não funciona como acabamento. Ela é o meio possível para dar densidade ao que ainda se move. Não há busca por perfeição formal. O que interessa é a espessura. Cada camada, cada falha, cada falecimento de contorno carrega um tipo de verdade que não se alcança por planejamento. A obra exige atenção, mas não entrega resposta. O que se oferece é uma superfície porosa, onde os fragmentos se reorganizam sem se dissolver.



Mazé Andrade - Projeto Mata Atlântica
Mazé Andrade - Projeto Mata Atlântica

Ao contrário do que se espera do discurso autobiográfico, essa produção não narra. Não explica o sujeito. Não organiza o tempo. A imagem não serve como documento nem como extensão da vida íntima. Ela se situa em um intervalo mais difícil de descrever: aquele onde a experiência ainda não se acomodou. A figura não representa alguém. Ela registra um modo de sentir. A cor não ilustra o afeto. Ela carrega um traço dele. A obra não quer ser compreendida. Quer ser sustentada.


É nessa zona de instabilidade que o pensamento se desloca. A experiência estética passa a ser menos uma contemplação e mais uma presença. O espectador não assiste. Ele é implicado. A imagem não exige deciframento. Ela exige convivência. O tempo da obra não se esgota na observação. Ele se prolonga naquilo que permanece vibrando depois do encontro.


Em tempos de padronização curatorial, onde a produção artística muitas vezes é convertida em objeto discursivo, há trabalhos que escapam por não obedecerem ao regime da resposta. Obras que se fazem sem barulho, que resistem à lógica do produto, que insistem no que não pode ser dito. Essa arte não é sobre o mundo. É feita a partir do que o mundo não conseguiu absorver.


O que pulsa não é uma crítica formal. É uma forma de se manter impregnado pelas forças que nos compõem. Não há elaboração pacificada. Há uma tentativa de reorganizar os resíduos do vivido. Quando o artista pinta, esculpe, grava ou instala, ele não afirma uma ideia. Ele sustenta uma fratura. Aquilo que a palavra já não dá conta. E é nesse ponto que a arte começa.



O projeto Amazônia, de Mazé Andrade, se insere com rara precisão no campo da referencialidade interna. Não se trata de uma narrativa descritiva sobre a floresta ou uma representação paisagística do bioma. O que se vê é uma resposta estética ao modo como a artista foi atravessada por esse território.

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Entre os muitos modos de produção visual ancorados em pulsões internas, o projeto Mata Atlântica, uma Captura Artística, de Mazé Andrade, apresenta-se como exemplo de uma criação referenciada por vínculos afetivos e corporais com o território. Não se trata da representação de uma floresta como paisagem observável, mas da elaboração de uma experiência vivida, onde memória e deslocamentos se confundem na matéria da pintura. As obras não pretendem ilustrar o bioma, mas reconstituir, com delicadeza e densidade, as impressões sedimentadas ao longo de décadas de convivência com a região de Aldeia, em Pernambuco.


A mata, nesse contexto, não comparece como imagem estabilizada. Ela se insinua por vestígios, por estruturas visuais que guardam o rumor das folhas, a instabilidade da luz e o tempo das coisas que ainda resistem. As técnicas utilizadas, colagem, impressão, acrílica, nanquim, óleo, se tornam extensões do gesto que busca não fixar, e sim acompanhar. Mazé Andrade articula uma poética onde a materialidade da obra carrega também o peso do que não se diz. O que se vê não é a floresta como símbolo, mas como presença absorvida no corpo da artista e devolvida à superfície com ética e contenção.


Essa abordagem confirma a potência da referencialidade como prática artística: não uma citação de si, mas uma observação prolongada do que se viveu de modo tão profundo que se insere na forma. Ao inserir a floresta no campo expandido da pintura, Mazé a traduz com os recursos do tempo e da matéria . É nesse ponto que sua obra se insere, não como registro ambiental nem como comentário discursivo, mas como ato de retenção daquilo que não se converte em dado visível, mas ainda pulsa na espessura do tempo.




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