Recortes Contemporâneos | O que Acontece Quando a Arte é Feita para Agradar?
- Marisa Melo

- 18 de ago.
- 3 min de leitura
Atualizado: 17 de set.

Há um limite tênue entre o gesto que se abre ao outro e aquele que se molda para ser aceito. Quando a arte passa a existir apenas para agradar, algo se perde, não no acabamento, mas na espinha. A criação, que antes partia de uma necessidade interna, passa a responder a estímulos externos: o gosto do público, as expectativas do mercado, o que é tendência nas redes ou o que soa palatável em uma exposição coletiva.
A arte que busca agradar não é necessariamente ruim. Muitas vezes, é visualmente correta, formalmente organizada, emocionalmente eficiente. Mas é também inofensiva. Foge da fricção, evita ruído, recusa o conflito. Ao tentar ser aceita por todos, acaba por não incomodar ninguém. E arte que não incomoda, mesmo que seja delicada, precisa ter alguma forma de tensão, senão, vira decoração. E isso vale também para obras que usam o vocabulário da crítica social ou da política identitária como verniz. Discurso e denúncia podem ser ferramentas de potência, mas também podem virar adesivos quando não há linguagem sustentando.
Agradar é, quase sempre, o medo de não ser visto. O artista molda o que faz para ser compreendido, a galeria escolhe o que mostra para ser vendável, e o público reage ao que já conhece porque é mais confortável do que ser confrontado. Cria-se assim um ciclo de retroalimentação onde o gosto, muitas vezes domesticado, passa a ditar o que vale. O risco sai de cena. O erro também. O ensaio vira produto final.
Não é de hoje que o mercado interfere nas escolhas dos artistas. Mas a diferença está no lugar de onde se parte. Há quem crie com consciência de mercado sem perder densidade. E há quem se perca ao tentar ser o que o mercado espera. A arte que se dobra às exigências externas antes de entender o que precisa dizer, se torna fórmula. Funciona. Circula. Mas não reverbera.
O problema não está em ser compreendido. Nem em querer diálogo. A questão é quando o desejo de aceitação passa a editar o processo criativo. A suavização se instala. A obra é aparada nas arestas. O traço é corrigido. O que poderia ser estranhamento vira agrado. A linguagem se adapta, e o gesto deixa de ser pergunta para se tornar resposta.
No fundo, há um deslocamento de eixo. A criação deixa de nascer do conflito, da falha, do silêncio, e passa a ser orientada pelo retorno. Tudo começa a ser calibrado: o tamanho da obra para caber em uma parede residencial, a cor para harmonizar com o ambiente, o conceito para caber em uma legenda de Instagram. A autonomia do artista é colocada à prova o tempo todo. E muitos, na tentativa de sobreviver, abrem mão da própria pesquisa.
Isso não significa que toda arte comercial seja vazia. Também não é uma apologia ao hermetismo. Há obras acessíveis e profundas. Há artistas que conseguem circular e manter coerência. A questão não é binária. Mas o que está em jogo é o ponto de origem da criação. Quando o gesto nasce da necessidade de agradar, ele já carrega uma concessão. E uma concessão não é sempre um problema, desde que não seja o critério principal.
Nos bastidores, esse movimento cobra um preço. Artistas ficam reféns da própria aceitação. Começam a repetir fórmulas que funcionaram. Se policiam para não “errar”. Evitam risco formal ou temático. Reproduzem o que já deu certo. Tornam-se profissionais da própria performance. E, aos poucos, a pesquisa vira produção, a produção vira rotina, e a rotina vira exaustão.
Do ponto de vista curatorial, obras feitas para agradar são muitas vezes bem-acabadas, mas frágeis. Falta nelas o desequilíbrio que cria fissura. Falta o tempo da elaboração, da hesitação. Falta a pergunta sem resposta. O que o público chama de beleza, às vezes, é apenas previsibilidade bem embalada. E o que parece leveza, às vezes, é ausência de conflito.
Claro que o olhar treinado percebe. Não é sobre técnica, é sobre densidade. A obra que tenta agradar demais tem algo de ansioso. De controlado. De estrategicamente seguro. E o excesso de controle mata a potência.
A arte que provoca, que desloca, que incomoda ou emociona sem facilitar, essa é a que resiste. Porque mesmo que não agrade a todos, mesmo que não caiba no padrão, ela se sustenta por algo que não depende da resposta imediata. Ela impõe presença. E presença não se constrói com concessão, mas com coerência.
No fim, é sempre uma escolha: agradar ou arriscar. Ser palatável ou ser verdadeiro. Circular ou se comprometer com a linguagem que ainda está sendo construída. Nenhum caminho é fácil. Mas há uma diferença entre ser reconhecido e ser domesticado. A arte que importa, carrega algo que não se explica. Ela não agrada, ela insiste.
Marisa Melo


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