Recortes Contemporâneos | Criar é um gesto de risco
- Marisa Melo

- 24 de nov. de 2024
- 3 min de leitura
Atualizado: 17 de set.

“Se o artista não se arrisca, não é arte, é produto.” Essa afirmação poderia iniciar qualquer reflexão séria sobre o ofício criativo. Desde as primeiras civilizações, a arte carrega um paradoxo inevitável: ao mesmo tempo em que procura dar forma ao que ainda não tem rosto, exige do artista a exposição de si mesmo. Criar nunca foi apenas resolver uma questão formal, é enfrentamento. Enfrentamento contra o tempo, contra a dispersão, contra a lógica utilitária que exige resultado, visibilidade, aceitação. O artista que decide permanecer fiel ao que sente caminha em direção oposta ao fluxo.
Quem cria sabe o que significa sustentar o peso de um território sem garantias. A música encontra sons que traduzem experiências partilháveis. O teatro transforma corpo e fala em espaço de verdade e ficção. A poesia organiza a dor em imagem. Mas é diante da tela em branco que talvez se concentre o maior impasse: o silêncio.
Cada obra nasce do desejo de organizar o caos. E junto com o primeiro traço chega a dúvida: será suficiente? Representa de fato o que sinto? Importa para além de mim?
Criar exige presença integral. Não pela vaidade de ser visto, mas pela entrega de quem compreende que talvez ninguém veja. A coragem não está em mostrar, mas em continuar mesmo sem retorno. O artista convive com a fricção entre o gesto autêntico e as demandas concretas do mundo. Como permanecer fiel ao que deseja dizer sem ser engolido pelo que esperam ouvir?
Para o artista visual, esse embate é ainda mais incisivo. A tinta carrega aquilo que não se traduz em palavras. A tela não é apenas suporte, é lugar de confronto. O que se apresenta pede tempo. Há obras que permanecem mesmo em voz baixa. Outras que se impõem, mas logo desaparecem. O que resiste não é o que agrada, é o que pulsa.
O fazer artístico também é moldado pela solidão. Mesmo diante de reconhecimento, o processo não muda. É no ateliê que o artista encontra seus verdadeiros impasses. Ali onde não há público, onde não existem testemunhas, o trabalho se sustenta. São noites extensas, dias de silêncio, percursos que não rendem exibição imediata. Mas é nesse espaço não exposto que se encontra a respiração necessária para seguir.
O tempo não favorece. Ele corre, pressiona, escapa. O artista corre junto, tentando concluir o que parece infinito. Teme não dizer o que precisa ser dito, teme desperdiçar o que sente. Mas é na insistência em voltar, revisar, começar novamente, que a obra nasce. Nunca pronta, mas viva. Com rugosidade, com incerteza, com presença.
Há instantes em que tudo se ajusta. Um olhar diante de uma obra, uma emoção que não encontra nome, uma presença que se reconhece. É nesse momento que a arte cumpre sua função: não como explicação, mas como elo. O que antes parecia fragmentado ganha vínculo. O que o discurso separava se aproxima.
Os conflitos do artista não bloqueiam a criação, são parte dela. São eles que garantem a honestidade do gesto. Sem conflito, não há profundidade. E sem profundidade, sobra apenas decoração. A arte que importa não busca consenso, não se adapta para agradar. É a que se oferece em sua inteireza, mesmo quando desconforta. Porque o que transforma não é o polido, é o verdadeiro.


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