O léxico do artista | Recortes Contemporâneos
- Marisa Melo

- 19 de set.
- 4 min de leitura

Há um momento na trajetória de todo criador em que a obra deixa de ser apenas produção isolada e passa a se revelar como linguagem. Esse instante é marcado pela percepção de que existem elementos recorrentes, sinais que se repetem de maneira consciente ou inconsciente, e que juntos formam aquilo que podemos chamar de léxico do artista. Não se trata apenas de um conjunto de cores, formas ou materiais, mas de um idioma visual, uma gramática própria, capaz de comunicar sentidos e instaurar identidades.
Falar de léxico é falar de consistência. O artista que amadurece seu percurso desenvolve um repertório que se torna marca pessoal. Mesmo em meio a variações e experimentações, há sempre escolhas técnicas e gestos que reaparecem e que permitem ao espectador reconhecer uma assinatura. Esse processo não acontece de um dia para o outro, ele se constrói no tempo, na biografia e na disciplina de criar.
A biografia, nesse sentido, é parte indissociável da formação desse vocabulário. Experiências de infância, ambientes culturais, influências estéticas e até mesmo acidentes de percurso deixam rastros que se transformam em matéria de trabalho. O artista que cresceu cercado pela natureza, por exemplo, pode desenvolver um léxico marcado por tons terrosos, formas orgânicas e referências vegetais. Aquele que viveu intensamente a cidade talvez opte por contrastes fortes, fragmentos geométricos ou símbolos do cotidiano urbano. O léxico nasce de dentro, mas é também permeado pelo mundo.
Na análise de linguagem e estilo, o léxico se mostra como o território em que a experimentação encontra coerência. Um pintor pode variar a paleta, mas manter sempre a mesma estrutura compositiva. Uma artista pode trocar o suporte, mas persistir em certas formas simbólicas. Um escultor pode alternar entre bronze e madeira, mas continuar explorando o mesmo conflito entre o cheio e o vazio. A repetição de elementos não significa estagnação, mas o desenvolvimento de uma voz própria que se reafirma ao longo do tempo.
Interpretar o léxico de um artista visual é sempre um exercício delicado. Embora o olhar curatorial tenha justamente a tarefa de buscar caminhos de leitura, o vocabulário de um criador nunca se entrega por completo. Há sinais, rastros, rabiscos, cores, gestos e disposições formais que podem ser decifrados em parte, mas nunca dominados em sua totalidade. Presumir que tudo está acessível ou plenamente visível seria reduzir a potência da obra. O léxico, também guarda zonas de opacidade e de mistério, e é nessa impossibilidade de controle que reside sua força.
Esse léxico é também o que conecta as obras dentro de uma exposição. Quando se percorre uma sala em que diferentes peças de um mesmo artista estão reunidas, é a força de seu vocabulário visual que cria unidade. Não é necessário que todas as obras sejam iguais, mas que todas falem a mesma língua. Essa coesão não apenas facilita a leitura crítica, como fortalece a presença do artista na cena contemporânea. É nesse conjunto que se percebe a densidade de uma pesquisa e sua capacidade de dialogar com o público.
O tom filosófico dessa discussão reside no fato de que o léxico não é simplesmente um recurso técnico, mas uma forma de identidade. Ele aponta para a questão: quem é este artista diante de nós? O que o diferencia em meio à multiplicidade de vozes que compõem o campo da arte? Ao longo da história, grandes nomes se tornaram reconhecíveis justamente pela força de seus léxicos: Mondrian com suas linhas e cores primárias, Frida Kahlo com seus autorretratos, Tarsila do Amaral com sua paleta modernista e formas antropofágicas. Todos eles não apenas criaram obras, mas instauraram uma língua visual que permanece viva até hoje.
No contexto atual, em que a arte circula rapidamente em redes sociais, feiras e exposições coletivas, ter um léxico consolidado se torna ainda mais essencial. Ele funciona como ancoragem, como garantia de que o trabalho não se dilui em modismos passageiros. Para o artista emergente, identificar seu léxico é um exercício de autoconhecimento; para o artista já estabelecido, é o que assegura continuidade e reconhecimento.
O léxico também é dinâmico. Ele não se limita a repetir fórmulas, mas se reinventa, mantendo a essência. O desafio do artista é equilibrar coerência e renovação, permanecendo fiel ao núcleo de sua linguagem sem se tornar previsível. Esse movimento é o que faz de uma trajetória não apenas uma repetição, mas um constante aprofundamento.
Concluir que o léxico do artista é apenas um conjunto de escolhas visuais seria reduzi-lo. Ele é, sobretudo, uma manifestação do modo como o artista habita o mundo e como transforma esse habitar em criação. Ele se expressa nas cores que insiste em usar, nas formas que reaparecem, nos materiais que escolhe, mas também no silêncio entre uma obra e outra, no espaço que organiza em uma exposição, no gesto que se repete sem ser consciente.
Pensar o léxico do artista é pensar o lugar onde biografia, linguagem e estilo se encontram para criar identidade. É compreender que uma obra não fala sozinha, mas em conjunto com as demais, tecendo um discurso visual que atravessa o tempo e dá permanência ao gesto criador. O léxico é, a verdadeira assinatura de um artista, a sua gramática estética e filosófica, o campo em que obra e vida se tornam inseparáveis.
Marisa Melo
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