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O erro como forma | Recortes Contemporâneos

Entre arte e filosofia: quando o acaso se torna linguagem


Toda criação nasce de um desvio. O gesto que falha, a mancha que escapa, o traço que não obedece são os lugares onde a arte se reconhece mais viva. O erro, quando aceito como parte do processo, deixa de ser falha e se transforma em forma.




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Durante séculos, a história da arte foi escrita sob a lógica da perfeição. A harmonia das proporções, a simetria das figuras, o domínio técnico eram critérios de beleza e de verdade. O artista era medido pela capacidade de controle, como se a criação dependesse de eliminar toda imprevisibilidade. O erro, era algo a ser apagado. No entanto, a modernidade inverteu essa lógica. A partir do século XX, o equívoco deixou de ser ameaça e tornou-se matéria. O gesto acidental começou a ser visto como possibilidade estética, e a desobediência à regra passou a fundar novas linguagens.


Lucio Fontana, ao rasgar suas telas, transformou a destruição em criação. Francis Bacon, ao distorcer rostos e corpos, revelou uma humanidade ferida, mas ainda pulsante. Jean Dubuffet, ao usar materiais pobres e gestos desajeitados, aproximou a arte do chão, da matéria bruta e do erro cotidiano. O que antes era falta passou a ser força. O erro abriu espaço para o inesperado, para o que escapa à vontade de controle e revela a força vital da criação.


O gesto criador, quando livre, é sempre impreciso. A arte acontece no intervalo entre a intenção e o resultado. Entre o que se quer dizer e o que se consegue dizer há uma distância que nenhuma técnica elimina. Essa distância é o espaço do erro. É nele que surge a surpresa, a faísca do que não estava previsto. Por isso, o erro não é ausência de saber, mas sinal de liberdade. O artista que se permite errar abre caminho para o desconhecido.


O acaso introduz o imponderável, obriga o criador a negociar com o imprevisível. Muitas das descobertas estéticas mais importantes nasceram assim: uma tinta que escorreu demais, uma forma que se rompeu, um gesto que não pôde ser repetido. A arte moderna e contemporânea compreenderam que o rigor não está em eliminar o erro, mas em acolhê-lo como parte do método.


Os artistas do movimento informal europeu, os expressionistas abstratos e os construtivos latino-americanos entenderam que a criação é um processo da própria matéria. A superfície responde, o gesto reage, a pintura conduz. A obra não é mais o resultado de um plano, mas de um diálogo entre intenção e acaso. A técnica se torna um modo de acompanhar o imprevisto, não de dominá-lo.


O filósofo japonês Daisetz Suzuki dizia que “a perfeição é uma forma de rigidez”. Na arte, o erro é o que devolve movimento à forma. Ele impede que a obra se cristalize em fórmula. Por isso, artistas como Wols, Pollock ou Mira Schendel trabalharam com a consciência de que a matéria é viva e imprevisível. A cada traço, há um risco, e é esse risco que mantém o trabalho pulsante.


O erro também carrega uma força ética. Em um mundo obcecado pela eficiência, a arte que celebra a falha recorda o valor da imperfeição. O gesto imperfeito é humano, vulnerável, real. Quando a arte aceita o erro, ela reaproxima o humano de sua condição natural de incerteza. No campo simbólico, o erro se converte em manifestação contrária à lógica produtivista que domina a vida contemporânea.


Há, ainda, um aspecto filosófico mais profundo. O erro é o que rompe a repetição e abre caminho para o novo. Sem erro não há descoberta. Todo pensamento que busca expandir seus limites precisa atravessar o fracasso. A arte, nesse sentido, é o espaço mais livre de experimentação, porque nela o erro não é punição, é revelação. O gesto que não dá certo pode revelar o que estava invisível.


A tradição oriental, especialmente o conceito japonês de wabi-sabi, compreende essa ideia com delicadeza. O belo não está no perfeito, mas no que é transitório, irregular e incompleto. A rachadura na cerâmica, o desgaste do tempo, a linha fora do compasso são sinais de vida. A arte que incorpora o erro reconhece o tempo como parte da forma e o acaso como colaborador do gesto criador.


Aceitar o erro é aceitar a própria arte como experiência viva. O erro torna-se gesto filosófico, pois questiona a ilusão de controle e devolve sentido ao fazer. Cada falha é também uma forma de verdade. O artista que erra não perde o caminho: inventa outro.



Marisa Melo



Recortes Contemporâneos é uma coluna de observação do tempo, entre a arte e a filosofia. Cada artigo procura compreender como a criação humana traduz a inquietude do existir e transforma o visível em pensamento.

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