A fidelidade da luz: Michelli Cunha e a verdade dos instantes
- Marisa Melo

- 14 de nov. de 2023
- 3 min de leitura
Atualizado: 17 de set.

Há artistas que nos lembram que criar é, antes de tudo, um exercício de contemplação. Em uma época em que a fotografia parece cada vez mais guiada por filtros, efeitos e manipulações digitais, surge um trabalho que se recusa a seguir esse caminho e prefere devolver ao olhar aquilo que muitas vezes esquecemos de enxergar: a nitidez simples e radical do real. A obra de Michelli Cunha, nascida em Bento do Sul, em Santa Catarina, é um desses raros gestos que resgatam a confiança no poder essencial da imagem. O que ela oferece ao público não é apenas registro, mas a experiência de reencontrar o mundo tal como ele se mostra, sem máscaras, sem artifícios, em sua potência natural.
Seu percurso é essencialmente autodidata, mas isso não significa ausência de estudo. Pelo contrário: sua formação se consolidou em cursos profissionais e leituras específicas que lhe permitiram lapidar tanto o olhar quanto a técnica. Esse aprendizado construiu um repertório que alia técnica à capacidade sensível de perceber detalhes que escapam ao olhar comum. Há em sua biografia um equilíbrio entre disciplina e intuição, como se cada fotografia fosse o resultado de uma vida que soube se educar pelo mundo e pela prática, sem depender de moldes rígidos para encontrar consistência.
Sua linguagem se organiza a partir de um princípio de integridade. Em um campo saturado por imagens construídas artificialmente, Michelli escolhe o oposto: manter a veracidade do instante. Essa opção não é um gesto de ingenuidade, mas de estética e ética. Ao recusar a intervenção excessiva, ela transforma a simplicidade em método e a fidelidade ao real em poética. O que muitos poderiam ver como limitação, em seu trabalho se revela como estilo, pois não há neutralidade possível quando se trata de olhar. Cada enquadramento, cada luminosidade escolhida, cada instante congelado carrega a marca de sua percepção.
É nesse ponto que suas referências artísticas se tornam visíveis. Assim como Ernst Haas, Michelli não busca apenas o impacto imediato, mas a profundidade da imagem capaz de se sustentar no tempo. Como Ansel Adams, entende que a fotografia da natureza não se reduz a paisagens, mas pode ser também uma forma de pensamento: um modo de refletir sobre a passagem do tempo, sobre a relação entre o humano e o ambiente, sobre o silêncio e a persistência das formas naturais. A inspiração que recebe desses mestres é, diálogo, pois em suas obras reconhecemos uma linhagem que valoriza a fidelidade ao que se apresenta diante da lente, sem deixar de afirmar a autoria no gesto de captar.
As fotografias operam uma suspensão do tempo. Quando nos deparamos com suas imagens, há uma pausa que se instaura entre o espectador e o mundo, como se a cena fotografada interrompesse o fluxo cotidiano para nos devolver a capacidade de atenção. Essa qualidade é rara e se deve ao compromisso da artista em não sobrepor artifícios ao que já é suficientemente grandioso. O mar, o céu, a vegetação, os reflexos da luz, tudo isso é devolvido em estado de inteireza, como se a câmera fosse apenas o meio de uma escuta silenciosa.
Sua série Paisagens sintetiza esse gesto criativo. O azul do céu adquire intensidade, o mar se apresenta em sua serenidade, e a natureza surge em sua amplitude sem adornos desnecessários. Não se trata apenas de uma coleção de belas imagens, mas de um corpo de trabalho que insiste em nos lembrar da dignidade daquilo que chamamos de comum. Ao fixar essas cenas, Michelli não idealiza a natureza, mas a reconhece em sua presença integral, revelando ao espectador que o extraordinário pode estar no mais próximo e no mais evidente.
No contexto contemporâneo, em que a fotografia muitas vezes se confunde com espetáculo, o trabalho de Michelli Cunha aparece como contraponto. Sua obra nos faz repensar o papel da imagem em nossas vidas: mais do que registro ou entretenimento, ela pode ser ferramenta de reconciliação com o mundo. O que vemos em suas fotos não é apenas a beleza da natureza, mas a possibilidade de restituir à visão o poder de perceber o que é essencial.
Marisa Melo



