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A máscara que virou pele



Desencanto Lúcido — 2019, p. 18_MM
Desencanto Lúcido — 2019, p. 18_MM

Ao longo da vida, usamos máscaras. Algumas por defesa, outras por desejo de pertencimento. Há as que servem para agradar, as que protegem da exposição, as que fingem saber o que não se entende. A máscara, no início, é ferramenta de sobrevivência. Um disfarce necessário diante de ambientes hostis, vínculos frágeis, exigências sociais. Ela permite circular. Permite ser aceito. Permite evitar o confronto que ainda não se sabe sustentar.


A infância ensina as primeiras. A máscara do “bom comportamento”, da “criança madura”, da “filha que não dá trabalho”. Depois vêm as outras: a da simpatia social, da inteligência performada, da sensualidade forçada, da força inabalável. Uma para cada ocasião. Uma para cada espaço onde ser quem se é parece inadequado demais.


Algumas são usadas com tanta frequência que passam a parecer verdade. Outras são tão bem executadas que enganam até quem as veste. A máscara, nesse estágio, não é mais um acessório. É uma linguagem. Um modo de estar no mundo. Uma narrativa aceita, porque mais simples do que sustentar a complexidade da autenticidade.


Mas há um preço. E ele não é pequeno. Sustentar uma máscara exige esforço contínuo. Exige calcular palavras, gestos, silêncios. Exige vigilância emocional. Quem vive mascarado nunca descansa. Porque o outro precisa ser convencido o tempo todo. E, mais cruel do que isso, porque em algum momento, o disfarce começa a colar na pele.


É aí que a identidade se perde. Quando o personagem se confunde com a pessoa. Quando já não se sabe o que é escolha e o que é reflexo condicionado. Quando a voz já não distingue se está falando a própria verdade ou reproduzindo o roteiro ensaiado. A máscara, nesse ponto, já não protege. Prende.


O amadurecimento, quando é real, começa nesse ponto. Quando a angústia de performar ultrapassa o medo de decepcionar. Quando a alma começa a reclamar de dentro da armadura. Quando o silêncio interno se torna insuportável. A lucidez, como sempre, chega com dor. Mas também com alívio. Não é preciso mais fingir.


A retirada da máscara não é abrupta. É lenta, trabalhosa, às vezes violenta. Porque ela não sai limpa. Sai arrancando junto pedaços do que foi construído sobre ela. Vínculos baseados na performance se rompem. Espaços ocupados sob disfarce se esvaziam. Há perdas. Mas são perdas necessárias.


Porque só sem a máscara é possível respirar sem culpa. Amar sem barganha. Falar sem cálculo. Dizer não sem se justificar. Escolher sem temer exclusões. A verdade, quando é finalmente assumida, reorganiza tudo. E quem sobrevive a essa nudez radical já não aceita vestir nada que o limite.


Alguns, porém, mantêm a máscara por tempo demais. Até que ela se torna pele. Nesse estágio, não há mais esforço consciente. Há automatismo. Há um tipo de esquecimento de si que se confunde com personalidade. O mundo está cheio de pessoas assim: educadas, funcionais, bem-sucedidas, e ausentes de si. Nunca tiraram a máscara. Ou porque não puderam. Ou porque não quiseram encarar o rosto que há por trás dela.


Mas há quem se recuse a terminar a vida fantasiado de si mesmo. Quem decide suportar a própria verdade e pagar o preço de habitá-la. Esses não são os mais leves, nem os mais aceitos. São apenas os mais livres.



Marisa Melo

Do livro Desencanto Lúcido. Quando a ilusão já não tem mais utilidade. MM





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