A Última carta
- Marisa Melo

- há 3 dias
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A carta estava guardada entre as páginas de um livro que ela não abria havia décadas. Já não lembrava qual era o título, nem o motivo de tê-la colocado ali. Só percebeu a existência do envelope quando ele escorregou e caiu no chão, enquanto ela reorganizava a estante numa tarde morna. Amarelado, com as dobras ainda firmes, exalava um perfume discreto, desses que resistem ao tempo mais do que as próprias palavras.
Era dele.
Ela se sentou com o envelope no colo, sem pressa, mas também sem coragem de adiar. Aquilo não era apenas um pedaço de papel; era um segredo antigo, uma memória congelada. Abriu de uma vez, como sempre fazia, e leu como quem já sabe o enredo. Achava que conhecia cada linha de cor. Era a carta de despedida, escrita no verão em que ele partiu para nunca mais voltar. O mesmo verão em que ela prometeu que não escreveria para ele outra vez. Nem por impulso, nem por carência, nem por fraqueza.
As frases estavam intactas. E ali estava também a sentença que sempre a acompanhou, quase como uma condenação: “Se um dia você ler com calma, talvez entenda o que eu não consegui dizer.”
Naquele instante, algo mudou. Em vez de passar correndo os olhos, como fizera tantas vezes, ela decidiu obedecer. Leu devagar, palavra por palavra, como quem escuta o eco de um som distante. E, nesse gesto inédito, percebeu o que antes não via. Não havia acusação. Nem desistência. O que havia era medo. Uma hesitação quase infantil. O esforço de um homem que não sabia traduzir o que sentia.
Foi então que compreendeu: ela interpretou como abandono o que talvez tivesse sido apenas um pedido mal construído de cuidado. Julgou como ausência aquilo que podia ser um gesto atrapalhado de amor. A frase que servira de prova para sua dor durante anos se transformava diante da nova leitura. Não era “fique aí”. Era “eu não sei como ficar”.
O erro não estava na carta. Estava na pressa dela em querer decifrá-la.
E a descoberta abriu outra porta: quantas vezes, ao longo da vida, teria lido errado o que lhe foi dito? Quantas vezes interpretou silêncios como rejeição, quando talvez fossem apenas medo de falar? Quantas vezes esperou declarações que não vieram e, ao se decepcionar, deixou de perceber que o afeto existia, mas em outra forma? Era inevitável se perguntar quantas histórias poderiam ter tido outro desfecho se tivesse sabido esperar, se tivesse escutado sem a urgência de encontrar respostas imediatas.
Ela fechou os olhos e respirou fundo. Não chorou. Também não sorriu. O que sentia não era arrependimento, tampouco consolo. Era algo diferente, uma espécie de paz serena, quase nova. A paz de entender que não se tratava de ter sido amada menos, mas de ter escutado com mais pressa do que cuidado.
Guardou a carta de novo, mas não no mesmo livro. Escolheu uma gaveta. E junto dela, pela primeira vez, colocou também as fotos dele. Lado a lado. A proximidade que nunca existira no tempo presente agora encontrava lugar no arquivo íntimo que ela própria organizava. Não como quem reabre uma ferida, mas como quem coloca cada coisa em seu devido lugar.
O passado não mudou. Ele continuava sendo o homem que partiu. Ela continuava sendo a mulher que ficou. O verão da despedida seguia intacto na memória. Mas o peso de tudo aquilo dentro dela já não era o mesmo.
E talvez fosse isso a verdadeira libertação: não a ilusão de corrigir o que passou, mas a possibilidade de compreender de outra maneira. De aceitar que a vida não é feita apenas de fatos, mas também de leituras. E que mudar a forma de ler pode mudar o efeito de um acontecimento, ainda que ele permaneça igual.
No fim, percebeu que há dores que não se resolvem. Há memórias que não se reescrevem. Mas há compreensões que aliviam. Às vezes, o que liberta não é refazer o caminho, mas reinterpretar a paisagem.
E foi exatamente o que aconteceu com a última carta.
Marisa Melo

