Recortes Contemporâneos | Entre disciplina e risco: o espaço da criação
- Marisa Melo

- 27 de dez. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 17 de set.
Em Os Comedores de Batata (1885), Van Gogh ainda buscava uma linguagem própria, distante das cores vibrantes que marcariam sua fase posterior. A cena escura e quase áspera revela o olhar atento a uma realidade dura, vivida por camponeses que compartilham o alimento simples. Essa obra, feita no início de sua trajetória, mostra que ser artista não é nascer pronto, mas aceitar a construção como processo. A disciplina de observar, estudar e errar foi o que permitiu a Van Gogh amadurecer até chegar às telas que hoje reconhecemos como inconfundíveis. Assim, a pintura se torna metáfora da ideia de que o artista se faz na persistência, na pesquisa e na coragem de sustentar sua visão, mesmo quando ainda não é compreendido.

Ser artista não é um título que se reivindica por conveniência, tampouco uma condição que nasce pronta. É uma construção que se desenrola no tempo, feita de escolhas, riscos, insistência e, sobretudo, de dedicação. O gesto de criar carrega a mesma disciplina que molda um ofício, mas exige também o enfrentamento de inquietações que não encontram resposta imediata. Chamar-se artista sem esse percurso é um gesto frágil, porque não basta a palavra, é necessário o peso do caminho.
Na história da arte, encontramos trajetórias que exemplificam essa ideia. Van Gogh, por exemplo, não teve um diploma que o legitimasse. Seu aprendizado foi marcado pela observação do mundo rural, pela experimentação intensa da cor e por uma disciplina que o levou a realizar mais de duas mil obras em pouco mais de uma década. Seu reconhecimento póstumo não diminui a coerência de sua jornada, que se construiu em torno da dedicação obsessiva e da busca de um olhar próprio. Já Paul Cézanne, considerado por muitos como o elo entre o impressionismo e o cubismo, passou anos sendo rejeitado pelos salões oficiais de Paris, até amadurecer uma linguagem que desafiava as convenções de sua época. Ambos revelam que a biografia do artista não se reduz a diplomas ou títulos, mas se inscreve na persistência, na pesquisa e na capacidade de sustentar uma visão diante da resistência do mundo.
A linguagem artística é sempre resultado desse processo de formação. Um pintor que se limita a repetir fórmulas acadêmicas pode atingir virtuosismo técnico, mas dificilmente encontrará autenticidade. A verdadeira linguagem nasce quando o artista é capaz de se libertar da rigidez dos modelos, usando o conhecimento aprendido como ponto de partida e não como prisão. Ao mesmo tempo, o autodidata precisa reconhecer a importância de bases sólidas: não há obra consistente sem referências, sem estudo e sem uma consciência dos fundamentos. A arte, nesse sentido, não se distingue de outras práticas humanas, como um pedreiro que ergue uma casa precisa conhecer os cálculos que sustentam sua estrutura, o artista também precisa de fundamentos para que seu gesto não se dissolva em improviso vazio.
Essa tensão entre aprendizado formal e experiência livre é o que impulsiona a linguagem. Em suas cartas, Van Gogh falava da necessidade de estudar incansavelmente a natureza, mas também de se permitir transformar essa observação em invenção. Cézanne, por sua vez, buscava em cada pincelada a reconstrução da realidade em suas formas mais essenciais, inaugurando uma visão que influenciaria Picasso e Braque. O estilo de cada um nasceu justamente desse embate entre disciplina e liberdade, mostrando que a linguagem de um artista é sempre biográfica, sempre marcada por escolhas e pela capacidade de assumir riscos.
No presente, a questão do aprendizado se amplia com os recursos digitais. A internet se apresenta como um vasto ateliê aberto, capaz de oferecer acesso a arquivos, tutoriais, conferências e imagens de coleções que antes eram restritas a poucos. No entanto, a abundância de informações exige discernimento. O artista que se perde na superfície do excesso digital corre o risco de reproduzir fórmulas sem reflexão, enquanto aquele que usa a rede como fonte de pesquisa crítica pode expandir horizontes e fortalecer sua linguagem. A tecnologia, portanto, não substitui a formação, mas pode enriquecer o percurso de quem busca.
Essa reflexão se conecta também ao espaço da exposição. Quando uma obra é apresentada ao público, ela traz consigo não apenas a materialidade do gesto, mas todo o caminho de sua formação. Em uma mostra, o espectador não vê apenas a tela ou a escultura, mas a síntese de anos de estudo, tentativas, erros e descobertas. É por isso que obras de artistas como Louise Bourgeois ou Lygia Clark mantêm uma potência tão viva: cada peça é atravessada por biografias longas, por inquietações existenciais e por experimentações radicais que resultaram em linguagens singulares. A exposição, nesse sentido, legitima não apenas o objeto, mas também o processo que o antecedeu.
Concluir que ser artista é apenas ter talento seria reduzir a complexidade desse ofício. O que define o artista é o acúmulo de experiências, o esforço contínuo em dar forma a uma visão de mundo, a pesquisa que não se esgota e a coragem de sustentar um percurso mesmo diante da dúvida. O diploma pode ser um recurso, assim como a internet é uma ferramenta, mas nenhum desses elementos define por si só a condição artística. A verdadeira validação vem da coerência entre trajetória e obra, da capacidade de transformar vivência em linguagem e de oferecer ao mundo algo que carrega densidade e autenticidade.
Ser artista é, portanto, um trabalho de vida inteira. Não é um ponto de chegada, mas um exercício constante de se formar e reformar, de errar e aprender, de experimentar e persistir. É uma jornada que não se resolve em declarações, mas que se inscreve na matéria das obras e na memória que elas constroem no tempo. O artista se reconhece menos por aquilo que diz de si mesmo e mais pelo vestígio que deixa: a obra que fala, o gesto que permanece, a linguagem que, nascida da biografia e do risco, se torna contribuição irrepetível à história da arte.Ser artista não é algo que se declara, mas que se constrói. Essa construção exige mais do que talento inato ou formação acadêmica.
Embora faculdades como Belas Artes ofereçam uma base técnica valiosa, elas não definem, por si só, o que é ser um artista. O verdadeiro artista se forma através de vivências, pesquisas, dedicação e de um olhar atento e inquieto diante do mundo. Autodeclarar-se artista, sem um trabalho de aprimoramento e conhecimento, é um gesto vazio.
A arte é tanto domínio técnico quanto expressão criativa. Um artista que se apega unicamente às regras ensinadas na faculdade pode limitar sua capacidade de experimentar. Muitas vezes, é necessário libertar esses profissionais das estruturas que aprendem, para que explorem novas possibilidades. Por outro lado, o caminho autodidata também demanda responsabilidade: é preciso buscar referências, estudar métodos e compreender as bases do fazer artístico. Afinal, assim como um pedreiro não constrói sem conhecer os fundamentos de sua profissão, o artista não cria sem mergulhar no conhecimento que sustenta sua obra.
A internet, hoje, oferece recursos que ampliam horizontes e tornam o aprendizado mais acessível. Porém, ela é uma ferramenta que exige discernimento. O que se busca e como se utiliza esse material faz toda a diferença no desenvolvimento de cada artista. Ser profissional vai além de diplomas ou títulos. É o resultado de uma trajetória marcada pela busca incansável de crescimento, pela curiosidade e pela capacidade de transformar estudo e prática em trabalho significativo. Essa é a verdadeira validação de um artista: sua dedicação e o caminho que percorre.


