Mesa Improvável, Madrugada Perfeita
- Marisa Melo
- há 2 dias
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Imaginemos, então, uma mesa encostada num canto de bar, numa madrugada quente, dessas em que o suor escorre sem pudor e o tempo se arrasta sem urgência. É verão, é madrugada, e a mesa está cheia. Vinícius bebe devagar, com aquele ar de quem já viu o amor partir e voltar mais vezes do que seria recomendável. Toquinho, ao lado, dedilha um violão na madeira da mesa, tentando acompanhar os pensamentos de Vinícius como quem acompanha um improviso sem pauta. Clarice não sorri, mas está inteira. Acolhida em seu silêncio, ela observa os outros com um olhar que sempre parece saber mais do que diz. Entre um gole e outro, escreve algo num guardanapo. Não é prosa, não é poema, é Clarice.
João Gilberto chegou calado, pediu um copo com gelo e ficou ali, entre a sombra e a música que só ele ouve. Tom Jobim fala sobre nuvens, sobre o Rio, sobre a mulher que atravessou a rua sem olhar pra ele. Ninguém sabe se é lembrança ou invenção. Herbert Viana pergunta se alguém quer dividir um cigarro. Está animado, fala alto, cita discos, desafia Vinícius com uma piada torta sobre os tempos em que se fazia canção com dor e não com algoritmo. Vinícius gargalha. Clarice não.
Mario Quintana chegou por último, encostando sua timidez na cadeira de Clarice. Pede café, mesmo sendo madrugada. Não quer saber do calor, nem da música, nem do barulho das garrafas. Quer saber por que a gente insiste em traduzir a vida com palavras. E por que, mesmo sem resposta, continua tentando.
A conversa não tem começo, nem fim. Às vezes vira canção, outras vira silêncio. Vinícius fala em saudade como se fosse gente. João não responde, mas dedilha o tampo da mesa com o ritmo exato de um coração que quase ama. Clarice escuta de lado, não gosta de sentimentalismo com sotaque, mas respeita. Tom descreve um acorde como se fosse paisagem. Herbert imita o som de um teclado com a boca e desafina, de propósito, só pra ver se alguém reage. Quintana não reage. Escreve.
Naquela mesa, ninguém queria ter razão. Nem ser atual, nem ser eterno. Queriam apenas estar. E estavam. Entre o barulho da rua e a lentidão do tempo, construíram uma noite que não existiu, mas que poderia ter existido. Uma noite que dispensava roteiro, pauta ou ensaio. Uma noite onde a literatura não pedia palco, a música não queria público e os egos estavam suficientemente embriagados para se calarem.
Clarice foi a primeira a sair. Deixou o guardanapo dobrado sob o copo de água. Ninguém tocou. João saiu logo depois, em silêncio, como quem nunca chegou. Vinícius pediu outra dose. Disse que a noite ainda estava crua. Toquinho queria tocar, mas não trouxe violão. Tom dizia que aquilo tudo merecia uma orquestra de ressaca. Herbert prometeu voltar com uma banda. Quintana só sorriu, sem promessas.
Se alguém tivesse passado por ali, teria visto apenas uma mesa ocupada demais para caber no presente. Uma mesa onde a madrugada parecia escutar. Onde ninguém precisava ser brilhante, porque já eram. Onde a única pauta era o prazer de estar junto, mesmo que fosse por uma noite inventada.
E se essa mesa nunca existiu, isso não importa. Porque agora ela existe aqui, entre essas linhas, e talvez seja melhor assim. Porque nenhuma cidade aguentaria tanto verbo, melodia e silêncio num mesmo espaço, sem derreter.
Marisa Melo
Esta mesa não pertence à história, pertence ao desejo. A reunião nunca aconteceu, mas é no imaginário que certas verdades se revelam com mais nitidez do que nos registros. Onde faltam fatos, sobram possibilidades. E às vezes, inventar é a forma mais honesta de lembrar. MM