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Mentir dá trabalho, mas rende prestígio

“A mentira que se repete com elegância não vira verdade. Vira vício.” MM



Ainda somos gente? — 2023, p. 66_MM
Ainda somos gente? — 2023, p. 66_MM

Macunaíma não mentia por necessidade, mentia por vocação. Mário de Andrade entendeu cedo que o mito brasileiro não nasceria da integridade, mas da esperteza. E talvez tenha sido, naquele herói sem nenhum caráter, que começamos a naturalizar o que hoje chamamos de flexibilidade narrativa. Macunaíma mente porque pode. Porque ninguém cobra dele coerência, apenas resultado. Porque sua astúcia, ainda que perversa, diverte. E assim seguimos, celebrando a mentira quando ela nos poupa do confronto com a verdade.


Não é que hoje se minta mais, é que se mente melhor. A mentira perdeu o peso moral e ganhou função estratégica. Ela organiza discursos, adapta biografias, sustenta carreiras, define relacionamentos. Mentir virou competência. E quanto mais convincente, mais respeitável parece o mentiroso. Existe uma ética paralela em funcionamento. Não a do compromisso com o real, mas a da habilidade de manipular o real ao próprio favor.


Quem nunca se beneficiou de uma omissão cuidadosamente ensaiada? Quem nunca escorregou para um elogio inventado? Quem nunca sorriu por conveniência, simulou interesse, disfarçou a indiferença com palavras bem escolhidas? A mentira cotidiana não escandaliza porque é funcional. Ela não destrói, acomoda. Suaviza situações, preserva vínculos frágeis, sustenta fachadas sociais. É o verniz do convívio moderno.


Mas há uma diferença entre o mentiroso eventual e o mentiroso vocacional. O primeiro mente para sobreviver, o segundo vive da mentira. E é esse segundo tipo que mais nos preocupa, ou deveria. Porque ele não mente apenas para os outros. Ele mente para si. Reescreve memórias, distorce fatos, se convence de versões que justificam sua própria falta de integridade. É o tipo de sujeito que esquece a verdade porque ela não lhe é útil. E quanto mais repete a mentira, mais ela se naturaliza.


O problema é que a mentira, mesmo quando refinada, cobra caro. Ela exige manutenção constante. O mentiroso precisa lembrar do que disse, com quem disse, em que tom e em que contexto. A verdade, embora muitas vezes desconfortável, é autônoma. A mentira, não. Ela exige gerenciamento. E como todo gerenciamento, cansa. Quem mente o tempo todo precisa estar em alerta permanente. Dorme mal, sustenta um teatro, vive cercado por receios. Porque sabe que a qualquer instante, a farsa pode ruir.


O mais cruel é que há quem admire esse tipo de domínio. A mentira bem contada impressiona. Sobretudo em ambientes onde a aparência vale mais que a substância. O que importa não é ser ético, mas parecer sensato. Não é ser competente, mas se apresentar como tal. Em muitas esferas, a mentira é premiada. E quem ousa dizer a verdade corre o risco de ser visto como ingênuo, ou pior, como inconveniente.


Macunaíma sabia disso. E por isso transitava tão bem entre mundos opostos. Não se tratava de incoerência, mas de conveniência. Ele era tudo o que precisava ser para continuar escapando. E escapava. Da responsabilidade, do amor, do trabalho, do compromisso. Virou símbolo. Um herói da esperteza. Uma espécie de patrono informal do jeitinho. Não porque era genial, mas porque era imune à culpa.


Vivemos em uma era onde a mentira ganhou roupagens sofisticadas. Ela não se apresenta mais como falsidade explícita, mas como narrativa adaptada. Mentir hoje é apresentar-se de modo estratégico. É calibrar a linguagem para cada ambiente. É oferecer a versão que mais agrada, não a que mais se aproxima dos fatos. E isso exige um tipo de inteligência que, quando usada com frequência, vira cinismo.


Talvez o grande desafio contemporâneo seja reaprender o valor do que é verdadeiro. Reconhecer que a frustração faz parte. Que a incoerência existe, mas não precisa ser sistematizada. Que a admissão de um erro vale mais do que a insistência em uma mentira confortável. A verdade pode não render aplausos, mas oferece algo raro: sossego.


Se Macunaíma ainda vivesse, provavelmente teria milhões de seguidores, um canal próprio, discursos afiados e um currículo impecável. Seria convidado para debates, elogiado pela fluidez, citado como referência. Mas não deixaria de ser o que sempre foi: alguém que escapa. E talvez o verdadeiro antídoto contra esse tipo de sedução seja o simples e incômodo ato de dizer o que realmente se pensa. Ainda que custe caro. Ainda que dê menos likes. Ainda que expulse da sala quem só entrou pelo enredo.


Mentir dá trabalho. Mas sustentar a verdade exige coragem. E coragem, hoje, é a única revolução possível.



Marisa Melo

“Escrevo sobre o que vejo, o que engulo, o que quase digo. Se você também anda duvidando da humanidade, senta aqui. Tem lugar. A pergunta segue: ainda somos gente?” MM

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