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Loucura em Modo Avião


Ainda somos gente? — 2023, p. 71_MM
Ainda somos gente? — 2023, p. 71_MM

Vivemos um tempo obcecado por novidade. A pressa virou critério de validade, a superficialidade se camufla de leveza e a constante atualização se impõe como virtude. Tudo precisa parecer funcional, ajustado, ágil. Mas há um traço cansado que insiste em permanecer: a loucura. Não a que rompe, a que reinventa, a que arrisca. Mas uma loucura burocrática, rotativa, inofensiva. Senil.


Ela não espanta, não sacode, não desorganiza nada. Apenas repete. Esboça um cansaço disfarçado de conteúdo. Perdeu o poder de perturbar e se tornou efeito colateral de um mundo domesticado demais para o abismo e distraído demais para a verdade.


Antigamente, o louco era perigoso porque dizia o que não se podia dizer. Hoje, o que escandaliza não é o excesso, mas a lucidez. Não há mais espaço para quem desmonta a lógica, apenas para quem gera engajamento. A loucura foi higienizada, enquadrada, convertida em meme. A excentricidade virou performance. O desequilíbrio, estratégia. O que antes perturbava a ordem agora a serve.


As redes estão cheias de surtos ensaiados, choros editados, diagnósticos recicláveis. A linguagem do descontrole virou estética, e a estética virou produto. O sofrimento é apresentado como um conteúdo possível, desde que não desagrade, não demore, não desafine. Não pode haver pausa, nem contradição. Só legendas motivacionais em cima do colapso.


E o que não cabe nesse formato é excluído. A dor sem roteiro não interessa. A inquietação sem legenda assusta. Os rompantes reais, os que não cabem em vídeo curto, são desconsiderados. Porque a única loucura permitida hoje é a que pode ser monetizada. A que se encaixa nos algoritmos.


Mas há algo mais grave: confundiram loucura com farsa. Fingir instabilidade passou a ser ferramenta de autoimagem. Chamar de ansiedade o que é tédio. Chamar de depressão o que é vazio de sentido. Chamar de trauma o que é consequência de escolhas. O resultado é um mercado de desequilíbrios, em que tudo precisa parecer disfuncional para parecer humano. E o humano, ao que parece, já foi reduzido a um conjunto de sintomas.


Talvez por isso a verdadeira loucura pareça senil. Porque é lenta, silenciosa, desconcertante. Porque exige do outro o que ninguém mais está disposto a oferecer: escuta sem urgência, tempo sem produtividade, convivência sem pressa. E porque não grita, ninguém a reconhece. Vai se arrastando nos cantos, sem nome, sem cliques, sem audiência.


O que vemos hoje não é loucura. É caricatura. Um tipo de exaustão promovida como liberdade. Uma tristeza moldada para caber em linguagem publicitária. O colapso virou tendência. Mas o delírio real, aquele que recusa o mundo como ele está, aquele que inventa outra possibilidade de existência, foi esquecido.


Talvez por isso tanta gente adoeça e ninguém pare. Porque parar exige reconhecer o que não pode ser convertido em post. E isso, no tempo em que tudo precisa virar conteúdo, é insuportável.


Marisa Melo


“Escrevo sobre o que vejo, o que engulo, o que quase digo. Se você também anda duvidando da humanidade, senta aqui. Tem lugar. A pergunta segue: ainda somos gente?” MM



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