O vazio vem polido
- Marisa Melo
- 20 de jul.
- 3 min de leitura
“O vazio educado exige mais força do que o confronto explícito. Porque ele fere sem admitir que feriu.” MM

Há uma superficialidade impecável em quase tudo hoje. As palavras são bem escolhidas. Os ambientes, bem iluminados. As relações, bem apresentadas. Há uma estética da leveza em circulação, e com ela, a ilusão. Tudo soa gentil, civilizado, espirituoso. Mas ao tocar, não encosta. Ao ouvir, não permanece. Ao tentar acessar, escapa.
É uma geração que aprendeu a parecer resolvida. Que sabe se expressar com precisão, mas evita qualquer emoção que transborde. Que domina o vocabulário da empatia, mas foge do desconforto real. A frase é bonita, o gesto é calculado, o texto tem métrica de feed. Só que ali, bem no centro da cortesia, mora o vazio.
Gentilezas foram sequestradas por uma lógica de autopreservação. Tornaram-se código social. Estratégia de aceitação. Rituais de simpatia que evitam qualquer risco de confronto. Mas nem toda gentileza toca. Algumas apenas confirmam que não se deseja envolvimento. São modos de manter distância com aparência de cuidado.
É fácil reconhecer esse tom. Pessoas que sorriem com os olhos, mas não escutam com o corpo. Conversas que fluem, mas não permanecem. Afetos que se declaram em palavras perfeitas, mas não se sustentam em ações mínimas. É o afeto higienizado, que aprendeu a se apresentar bem, mas não a se comprometer.
No trabalho, no amor, na amizade, as relações estão cada vez mais bem embaladas e menos habitadas. Há mais frases prontas do que conversa real. Mais acenos do que gestos. Mais presença digital do que presença viva. E uma espécie de vaidade emocional impregna tudo.
O que se vê é um desfile de vínculos que se dissolvem com elegância. Términos pacíficos, afastamentos civilizados, silêncios justificados por excesso de tarefas. Ninguém quer parecer cruel. Ninguém quer dizer que não quer mais. Então, vai-se embora devagar, sem barulho, mas também sem verdade. Desaparece-se com legenda. Some-se com classe.
A elegância virou disfarce. Não se grita, não se acusa, não se confronta. E por isso mesmo, não se transforma nada. Porque a fricção, às vezes, é o que move. O incômodo é o que revela. O desconforto é o que obriga a sair da zona de conforto.
Ser intenso virou sinônimo de descontrole. Questionar é visto como agressividade. Demonstrar afeto com excesso de corpo é desconfortável. Tudo que escapa da medida correta é interpretado como desequilíbrio. O equilíbrio virou exigência estética. Mas há um tipo de equilíbrio que é só falta de entrega.
Não se trata de defender relações caóticas ou emoções desenfreadas. Trata-se de perceber o quanto estamos disfarçando o vazio com verniz. O quanto chamamos de leve o que, na verdade, é só raso. O quanto preferimos perder a correr o risco de expor uma parte que não seja polida.
O discurso está bonito. A aparência é segura. As legendas são impecáveis. Mas há uma ausência que atravessa tudo isso. Uma secura que não se nota de longe, mas que, ao se aproximar, sufoca. Relações que não sustentam o peso de um silêncio. Gente que some ao menor sinal de intensidade. Conversas que deslizam sem jamais tocar.
Estamos bem vestidos por fora e emocionalmente esfarrapados por dentro. Falando com elegância sobre o que não vivemos. Entendendo tudo e sentindo quase nada. Recheando o dia com fórmulas e abandonando o corpo onde mora o incômodo real.
Talvez ainda sejamos gente. Mas estamos ocupando o lugar de gente com frases bem-feitas e afeto pasteurizado. E o risco maior não é a ausência de profundidade. É a ausência de verdade. Porque o vazio, quando vem polido, engana. E cansa mais do que a dor nua.
Marisa Melo
“Escrevo sobre o que vejo, o que engulo, o que quase digo. Se você também anda duvidando da humanidade, senta aqui. Tem lugar. A pergunta segue: ainda somos gente?” MM