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Arte e guerra: quando a estética reage ao colapso


Guernica, de Pablo Picasso, realizada em 1937
Guernica, de Pablo Picasso, realizada em 1937

"A guerra é apenas uma continuação da política por outros meios." A sentença de Carl von Clausewitz, estrategista prussiano do século XIX, segue atual não apenas nos campos de batalha, mas nos ateliês, nas galerias, nas páginas dos livros e nos corpos que fazem da arte um território de insurgência. Quando a política colapsa em barbárie, é comum que a arte deixe de lado o contemplativo para reagir, refletir e interrogar. A guerra impõe uma urgência ética à produção artística: é impossível criar à margem do que fere, destrói e desintegra.


Ao longo da história, a arte respondeu à guerra de múltiplas maneiras, não como registro neutro, mas como elaboração crítica, como grito ou denúncia. Francisco Goya, diante dos horrores da Guerra Peninsular, rompeu com qualquer idealização heroica. Seus gravados da série Os Desastres da Guerra (1810-1815) são brutais, quase insuportáveis, porque expõem o humano em seu avesso. Mais tarde, Picasso, com o monumental Guernica (1937), fez da pintura um manifesto. Ao retratar o bombardeio da cidade basca, o artista não buscou fidelidade documental, mas uma síntese visceral da violência, a dor condensada em preto, branco e cinza.


A filosofia também enfrentou a guerra com perguntas de longo alcance. Walter Benjamin, ao refletir sobre a Primeira Guerra Mundial, observa que o horror absoluto da experiência das trincheiras aboliu a possibilidade de transmitir sentido. “Nunca houve uma geração que mergulhasse tão fundo no abismo de uma experiência como essa.” O trauma, segundo ele, não encontra linguagem. E a arte, nesse contexto, passa a ter a função de criar uma forma para o informe, um sentido mínimo para o que excede a compreensão.


Na contemporaneidade, em um mundo marcado por guerras fragmentadas, assimétricas, muitas vezes travadas fora dos campos militares e dentro de territórios civis, a arte se reinventa como resistência. Artistas do Oriente Médio, da América Latina, da África e da Europa Oriental transformam os escombros em gesto político. Do Líbano à Ucrânia, da Síria à Palestina, vemos instalações, vídeos, performances e intervenções que acentuam a guerra, suas consequências: deslocamento, precariedade, luto. A matéria-prima é a ruína, o exílio, o corpo-alvo.


Essa produção artística não está preocupada em estetizar o sofrimento, tampouco em oferecer consolo. O que move muitos artistas é o enfrentamento da banalização da dor. Em tempos em que a violência circula em tempo real pelas redes, a arte se recusa a ser apenas imagem. Ela deseja provocar responsabilização. Como escreveu Theodor Adorno, “escrever poesia depois de Auschwitz é um ato bárbaro," não no sentido de condenar a arte, mas de exigir que ela não ignore a barbárie.


No Brasil, a herança da ditadura militar, das repressões e das invisibilidades históricas ainda reverbera em obras que tematizam a ausência, a tortura, a censura e o corpo político. Artistas como Rosângela Rennó, Cildo Meireles e Claudia Andujar confronta o lugar da arte como documento e denúncia. A guerra aqui não é apenas a oficial, mas também a guerra contra a população indígena, negra, periférica.


Falar da guerra na arte é falar do limite da linguagem e da potência de confrontá-lo. Toda criação em tempos de destruição carrega um dilema ético: como representar o irreparável? E, mais ainda, como não se tornar cúmplice da indiferença? A resposta não é única, mas passa por assumir a arte como campo de memória e enfrentamento. Um gesto que não repara o mundo, mas se recusa a compactuar com seu apodrecimento.



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