A beleza como forma perdida: o esgotamento estético das criações humanas
- Marisa Melo

- 8 de out.
- 3 min de leitura
Atualizado: há 7 dias
“O homem moderno acredita que perde algo; tempo, dinheiro, juventude, mas o que ele realmente perdeu foi a beleza." Friedrich Nietzsche

Há uma constatação que perpassa silenciosamente o nosso tempo: a beleza nos abandonou. Não desapareceu por completo, mas se retirou dos lugares onde antes era esperada. As cidades, os objetos, os gestos e até as palavras que criamos parecem marcados por uma espécie de aridez formal. Tudo se tornou funcional, rápido, intercambiável. O humano, que durante séculos buscou criar formas para se aproximar do divino, hoje produz apenas para manter-se ocupado. O gesto criador se reduziu a um exercício de técnica e de sobrevivência.
Em outros períodos, a beleza era entendida como manifestação da ordem do mundo. Na Grécia, ela expressava a harmonia entre corpo e espírito; na Idade Média, refletia a luz de Deus; no Renascimento, a inteligência humana reencontrava nela sua própria dignidade. Criar algo belo era um modo de compreender o real, de traduzi-lo em proporção e ritmo. Hoje, o que se chama criação é, muitas vezes, apenas consumo travestido de invenção. A multiplicação de imagens e produtos não gerou mais sensibilidade, mas saturação. A beleza, que exige contemplação, não sobrevive na urgência.
Platão via no belo o caminho mais alto para o conhecimento. Plotino dizia que ele emanava da alma como uma forma de retorno à origem. Kant, séculos depois, tentaria preservar o valor dessa experiência ao descrevê-la como o prazer desinteressado, livre de utilidade e propósito. Mas o mundo contemporâneo perdeu o sentido do desinteresse. Tudo precisa servir a algo, medir resultados, produzir efeitos. Até a arte, parece ceder à lógica da visibilidade e da justificativa conceitual.
Talvez por isso a beleza tenha se tornado suspeita. Ela é vista como desvio diante da complexidade do real. Esquece-se que a beleza não é fuga, mas forma. Que não se opõe à crítica, mas a exige. Uma obra bela não é necessariamente agradável; pode ser incômoda, desde que revele proporção, inteligência e sentido. A recusa contemporânea da beleza é, em muitos casos, recusa da medida. Vivemos num tempo de excessos visuais e de velocidade. Tudo se mostra, mas quase nada se revela.
Nietzsche, ao escrever sobre o nascimento da tragédia, descreveu a arte como conflito entre o apolíneo e o dionisíaco, entre a forma e o impulso vital. O equilíbrio entre essas forças era o que tornava o gesto criador autêntico. A modernidade dissolveu essa relação. O apolíneo, que trazia ordem e clareza, foi derrotado pelo dionisíaco da saturação. Criamos em excesso, mas sem forma. Vivemos rodeados de imagens que não nos tocam, de edifícios que não dialogam com o corpo, de sons que não se convertem em música.
Quando tudo é visível, o olhar perde o desejo. A beleza nasce da distância entre o que se mostra e o que se oculta, do intervalo que convida à aproximação. O mundo hiperexposto e digitalizado em que vivemos já não oferece essa distância. Tudo se entrega ao olhar de forma imediata, sem camadas. O resultado é uma sensação paradoxal: quanto mais vemos, menos enxergamos.
É curioso notar que, nos períodos em que a beleza ocupou um lugar central, ela era fundamento do pensamento. A escultura grega, a arquitetura islâmica, os afrescos italianos e os jardins japoneses expressavam visões de mundo. Cada proporção era uma forma de ética. Criar algo belo significava participar da harmonia universal. Essa ideia, hoje quase incompreensível, dava sentido à existência. Quando a beleza desaparece, o mundo se torna mais útil, porém mais pobre.
A falta de beleza nas criações humanas é o sintoma visível de uma desordem mais profunda. Construímos o que somos, e o mundo deformado que nos cerca reflete a própria fragmentação do sujeito contemporâneo. Há, porém, uma possibilidade de retorno. Ainda que discreta, a beleza resiste nas margens: em um traço preciso, em um objeto bem feito, em uma imagem que se sente.
O que se perdeu não foi a beleza em si, mas a nossa capacidade de reconhecê-la. Ela continua presente, silenciosa, à espera de um olhar que não se contente com o imediato. Reencontrar a beleza é reencontrar a própria medida humana, compreender que criar é também ordenar, e que a forma é a nossa maneira de permanecer.
Marisa Melo
Recortes Contemporâneos é uma coluna de observação do tempo, entre a arte e a filosofia. Cada artigo procura compreender como a criação humana traduz a inquietude do existir e transforma o visível em pensamento.


