Recortes Contemporâneos | A arte e suas singularidades
- Marisa Melo

- 21 de fev.
- 4 min de leitura
Atualizado: 17 de set.

A arte se revela menos nas grandes certezas do que nos gestos sutis que se insinuam no percurso criativo. Muitas vezes, está no detalhe quase imperceptível, naquilo que parecia sem importância dentro de um ateliê e que, de repente, imprime sua marca sobre a obra e se prolonga até a exposição. Uma ideia que surge e desaparece pode parecer efêmera, mas deixa um vestígio, como se o rastro fosse mais significativo que a própria permanência. É nesse espaço delicado, feito de pequenas percepções, que a arte se torna magnética. O olhar atento, seja do curador, do crítico ou do artista, busca justamente o sentido que se esconde nas brechas, na tentativa de decifrar a verdade e a emoção por trás da expressão.
Essa consciência não nasce de conceitos abstratos, mas da experiência vivida. Recentemente, em uma consultoria com uma artista, percebi como a conexão pode se estabelecer sem a necessidade de palavras. Havia ali um entendimento, uma sintonia quase intuitiva que ultrapassava a lógica racional. O encontro genuíno não exige tradução, basta estar presente. Essa experiência me lembrou que a arte se realiza também no instante em que há troca verdadeira. Quando duas pessoas compartilham a intensidade de um gesto criativo, as diferenças deixam de ser barreiras e passam a se tornar caminhos, rotas que ampliam a leitura da obra e aprofundam a percepção do que está sendo construído.
Nas exposições, esse fenômeno se multiplica. A singularidade se apresenta em formas variadas, nem sempre previsíveis. Às vezes, está em um jogo de cores e formas que emocionam por sua harmonia ou por sua estranheza. Em outros momentos, é um conceito que desafia a lógica habitual e obriga o espectador a desmontar certezas, convidando-o a uma reflexão mais profunda. A arte, em sua essência, pede para ser observada de diferentes ângulos. O que parece simples em um primeiro momento pode se transformar em uma revelação ao olhar mais demorado. Essa capacidade de converter o banal em descoberta é o que distingue a obra que permanece daquela que se dissolve no esquecimento.
Criar singularidades é captar a marca única, o traço que não se repete e que resiste a qualquer tentativa de imitação. Esse traço pode estar em uma pincelada, em uma narrativa ou no próprio modo como o artista se relaciona com seu processo criativo. Penso em Francis Bacon, que distorceu a figura humana não por capricho estético, mas para revelar a angústia existencial que se esconde sob a carne. Ou em Mark Rothko, cuja abstração cromática não pretendia apenas exibir cores, mas instaurar atmosferas emocionais capazes de mergulhar o espectador em estados de profunda interioridade. E lembro de Jean-Michel Basquiat, que transformou símbolos urbanos e referências culturais em uma gramática visual inconfundível, projetando nas telas a vitalidade e os conflitos de sua época. Cada um desses artistas construiu uma linguagem singular que se reconhece à primeira vista, justamente porque souberam escutar os sinais discretos que transformam o efêmero em essência.
No entanto, ser artista no Brasil continua sendo um desafio imenso. O sistema cultural, fragmentado e desigual, distribui espaços de forma restrita e muitas vezes arbitrária. Pequenos grupos conseguem se consolidar, enquanto tantos outros permanecem à margem, sem oportunidade de apresentar seu trabalho, sem acesso a redes de circulação ou legitimidade institucional. Essa realidade não diminui a potência criativa, mas revela a necessidade urgente de pensar a arte como território de emancipação. A criação não pode se reduzir a privilégios de poucos, precisa ser espaço aberto em que todos tenham direito de experimentar, errar, insistir e transformar.
A singularidade não deve ser confundida com exclusividade. Ela é o resultado de trajetórias pessoais, de experiências que se convertem em linguagem e que, quando expostas, ampliam o repertório coletivo. Uma cena artística plural só pode existir quando o acesso não está condicionado a barreiras invisíveis, mas quando cada artista encontra legitimidade para mostrar sua visão de mundo. O pluralismo não enfraquece a cena, ao contrário, fortalece-a, pois a diversidade de olhares e linguagens enriquece o campo e torna mais consistente a memória cultural de um tempo.
Concluir que a arte vive de singularidades é também reconhecer que cada gesto criativo carrega em si uma possibilidade de transformação. Singular não significa isolado, mas aquilo que, ao ser único, encontra seu lugar no comum. A função do crítico, do curador e do próprio público é perceber esses sinais e permitir que se expandam. Em um país onde a arte ainda enfrenta resistências e desigualdades, defender a singularidade é defender a liberdade de expressão em sua forma mais radical. Cada obra, ao afirmar sua diferença, amplia os limites do que entendemos como experiência estética.
Assim, podemos dizer que a arte nos convoca a olhar para além do óbvio, a reconhecer a força que se esconde nas sutilezas e a celebrar a pluralidade de vozes que compõem o tecido cultural. Se quisermos construir um cenário mais justo e democrático, é preciso insistir na ideia de que toda singularidade merece espaço. É no conjunto de diferenças que reside a verdadeira potência de uma cena artística. E é justamente ao acolher essas diferenças que a arte cumpre sua função essencial: transformar a percepção e, ao mesmo tempo, transformar o mundo.
Marisa Melo


