Iberê Camargo e o peso da pintura | Passaporte para a Imortalidade
- Marisa Melo

- 17 de set.
- 3 min de leitura
Atualizado: há 2 dias
Pintura como insistência, matéria e esgotamento da forma

Poucos artistas brasileiros levaram a pintura até um limite tão físico quanto Iberê Camargo. Em sua obra, pintar nunca foi um exercício de estilo, mas uma ação que exigia do corpo inteiro. Cada tela carrega esforço, insistência, desgaste. Nada busca agradar. O que se vê é uma pintura que se constrói pela repetição, pela matéria espessa, pelo confronto direto com a própria impossibilidade de representar
Iberê nasceu em Restinga Seca, no Rio Grande do Sul, em 1914, e morreu em Porto Alegre, em 1994. Sua trajetória atravessa quase todo o século XX brasileiro, mas sua obra nunca se acomodou às narrativas dominantes da modernidade. Conheceu o modernismo, dialogou com o expressionismo, observou a abstração, mas não se filiou a nenhuma dessas vertentes. Preferiu um caminho solitário, marcado por radicalidade.
Nos primeiros anos, sua pintura ainda se organizava a partir da paisagem e da observação. Há luz, horizonte, certo lirismo contido. Mas essa fase inicial já revelava inquietação. A paisagem nunca é idílica. O espaço parece sempre instável, como se algo estivesse prestes a se desfazer. Aos poucos, o interesse pela representação externa cede lugar a uma investigação mais densa, voltada para a própria estrutura da pintura.
É a partir desse deslocamento que a pintura de Iberê abandona a paisagem e passa a se concentrar na figura em movimento. Surgem então os carretéis, os ciclistas, corpos que não avançam, mas retornam sempre ao mesmo ponto. O ciclista não progride, ele gira. O movimento se repete até perder individualidade e sentido narrativo. O gesto deixa de contar uma ação e passa a insistir sobre si mesmo. A pintura se organiza nesse embate contínuo entre movimento e esgotamento, sem promessa de saída.
Formalmente, sua obra se adensa. A tinta ganha peso, a superfície se torna espessa, quase agressiva. A cor perde leveza. Marrons, negros, vermelhos escuros e azuis profundos passam a dominar a tela. Não se trata de uma escolha simbólica ou ilustrativa, mas de uma consequência do próprio processo. A pintura exige essa densidade para existir.
Iberê sempre declarou que não pintava ideias, pintava pintura. Essa afirmação não é retórica. Em suas telas, não há metáforas claras nem narrativas organizadas. Há matéria sendo empurrada, raspada, reorganizada. O gesto do artista não busca síntese, busca sustentação. Cada tela é resultado de embate prolongado.
Ao longo dos anos, sua obra foi amplamente exibida e reconhecida, tanto no Brasil quanto no exterior. Bienais, museus, exposições internacionais consolidaram seu nome como um dos grandes pintores do século XX. Ainda assim, Iberê nunca produziu uma pintura confortável. Mesmo nos momentos de maior reconhecimento institucional, seu trabalho permaneceu árduo, exigente, difícil de domesticar.
Fora do ateliê, sua vida não seguia o imaginário do artista desordenado. Iberê foi casado por décadas com Maria Coussirat Camargo, com quem manteve uma rotina estável e organizada. O casal não teve filhos, e a pintura ocupou o centro absoluto de seu tempo e de sua energia. Essa vida tranquila não suavizou a obra. Pelo contrário, amparou um trabalho conduzido com disciplina rigorosa e esforço diário.
É impossível ignorar que sua trajetória pessoal inclui episódios extremos. No entanto, reduzir sua obra a explicações biográficas empobrece sua complexidade. A densidade de sua pintura já estava em construção muito antes dos anos finais de sua vida. O peso, a repetição, o esgotamento do corpo e da forma são questões que percorrem sua produção como pesquisa contínua, não como resposta pontual a acontecimentos.
O que torna Iberê Camargo incontornável é a recusa em aliviar o próprio problema pictórico. A pintura não caminha para resolução. O espaço se contrai, o corpo perde folga, o movimento retorna sempre ao mesmo ponto. Não há sequência a acompanhar nem história a decifrar. O que a tela oferece é uma situação insistente, mantida até o limite, que exige do olhar confronto, não interpretação.
Nos últimos anos, essa radicalidade se intensifica. As figuras se tornam quase massa informe, o desenho se dissolve, a pintura se aproxima de um limite em que forma e matéria se confundem. Ainda assim, há controle. Cada tela resulta de um processo longo, feito de tentativa, correção e desgaste.
Iberê Camargo conquista o Passaporte para a Imortalidade porque não recuou diante da própria vida. Trabalhou todos os dias, com rigor e cansaço, atravessando décadas sem suavizar o gesto nem buscar acomodação. Sua pintura acompanhou esse percurso sem se proteger, sem se explicar, sem oferecer alívio. O que permanece é a figura de alguém que levou o que escolheu fazer até o limite, com disciplina, solidão e uma fidelidade rara ao próprio caminho.
Este texto integra a coluna Passaporte para a Imortalidade.









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