Lygia Pape | Passaporte para a Imortalidade
- Marisa Melo

- 17 de mar.
- 3 min de leitura
A Arte é o espelho da nossa alma. Dorian Gray e Fausto retratam sonhos: beleza, prazer, sabedoria... Oscar Wilde e Goethe souberam captar nosso íntimo, retratar suas épocas e entraram para a História. Esse é o poder da folha, da partitura e da tela em branco. Elas não esperam apenas mais um texto, mais uma canção, mais um quadro. Diante delas, um inglês escreveu “Ser ou não ser”. Um alemão combinou quatro notas mágicas em sua 5ª Sinfonia. E um italiano pintou um sorriso enigmático. Passaram-se os séculos. E Shakespeare, Beethoven e da Vinci seguem vivos e reverenciados. Nenhum deles planejou isso. Mas ao traduzirem suas almas em suas obras, conquistaram um passaporte para a imortalidade. Quando essa entrega acontece, o observador é conquistado. E aplaude um estilo, que buscará avidamente no próximo quadro. Até criar uma intimidade que lhe permita em segundos relacionar a obra ao autor.
Vamos conversar sobre alguns artistas e seus estilos inconfundíveis.
Hoje conosco, Lygia Pape.

Trajetória e estilo
Lygia Pape nasceu em 7 de abril de 1927, no Rio de Janeiro, e faleceu na mesma cidade em 3 de maio de 2004. Mas falar dela apenas em termos de datas é pouco: sua obra foi uma travessia entre forma e vida, entre disciplina construtiva e liberdade sensorial. Sua inserção no grupo neoconcreto, ao lado de nomes como Hélio Oiticica e Lygia Clark, não foi mero acaso histórico, mas a resposta de uma artista que se recusava a reduzir a arte à lógica mecânica da geometria. Para ela, o rigor não era prisão, era impulso para abrir caminhos que tocassem corpo, tempo e experiência.
Ainda jovem, estudou filosofia, o que lhe deu ferramentas para pensar a arte como reflexão crítica e não apenas como prática formal. Esse olhar expandido fez com que suas criações se desdobrassem em múltiplos suportes: gravura, filme, instalação, livro-objeto. A artista nunca se deixou aprisionar por um único meio, preferindo sempre o risco de experimentar.

Obras emblemáticas
Um dos trabalhos mais marcantes desse espírito é o Livro da Criação, realizado em 1960. Não é livro no sentido convencional, mas um conjunto de páginas que se abrem como exercícios de origem. Cada folha, com formas geométricas recortadas, convida o leitor a reconstruir a narrativa da gênese. O ato de virar as páginas se transforma em gesto criador: quem lê não apenas observa, mas participa da própria invenção do mundo. É nesse deslocamento, da contemplação passiva para a ação criadora, que Lygia se diferencia. Sua obra pede proximidade.
Nos anos 1970, e sobretudo a partir dos 1990, a artista desenvolveu a série Ttéia, talvez sua criação mais conhecida. O título mistura a palavra “teia” com a ideia de “tatear”, sugerindo uma rede que é tanto visual quanto tátil. São fios metálicos estendidos em cantos ou no meio de salas, iluminados de tal maneira que parecem linhas de luz suspensas no ar. Quem atravessa esses espaços tem a sensação de adentrar uma arquitetura invisível, onde o corpo se torna parte da obra. Se Mondrian buscava a pureza da forma no quadro, Lygia levava essa busca para o espaço, criando experiências que dissolvem fronteiras entre material e imaterial.
Além dessas criações, Pape explorou o cinema experimental, registrando o cotidiano brasileiro com olhar crítico e poético. Filmes como Eat Me e O Guarda-Chuva Vermelho revelam uma artista atenta às contradições sociais e à potência política da imagem. Em todos os suportes que escolheu, a marca foi a mesma: questionar limites, convidar à participação, transformar o olhar em experiência.
Sua morte em 2004 interrompeu uma trajetória ainda em expansão, mas não encerrou sua presença. Ao contrário, sua obra se fortaleceu nos últimos anos com exposições retrospectivas em grandes instituições internacionais como o MoMA, em Nova York, e a Fundação Reina Sofía, em Madri. Esse reconhecimento tardio apenas confirma o alcance universal de uma artista que nunca buscou fama, mas consistência.
Lygia Pape conquistou seu passaporte para a imortalidade ao mostrar que a arte não precisa escolher entre razão e sensibilidade. Em suas mãos, a geometria não era cálculo frio, mas energia pulsante; a linha não era limite, mas convite à travessia. Cada trabalho seu abre espaço para que o público se torne coautor, lembrando que criar é sempre um ato compartilhado. Sua arte segue viva porque continua a oferecer essa experiência de participação: uma teia luminosa, aberta, indomesticável.













