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A ocasião faz a oportunidade, o ladrão já nasce feito.


Machado de Assis
Machado de Assis

Machado de Assis nunca romantizou a natureza humana. Ao contrário, desconfiava dela com lucidez desconcertante. Enquanto muitos repetem que a ocasião faz o ladrão, ele escreveu com precisão cirúrgica: “A ocasião faz a oportunidade, o ladrão já nasce feito.” Essa frase, longe de ser apenas uma provocação, escancara o que ele sabia desde cedo: o caráter não se improvisa.


Machado não nasceu pronto. Nasceu pobre, mestiço, epiléptico, órfão de mãe ainda menino. Não teve escola formal nem privilégios. O que teve foi curiosidade, rigor e disciplina. Foi escrevendo que criou um lugar onde sua inteligência fosse irrefutável. Não usou a condição como desculpa nem como adorno. Usou a literatura como alavanca. E por isso é tão admirável.


Em sua obra, ninguém é ingênuo. A maldade aparece sem maquiagem. A hipocrisia não precisa ser punida, porque já se condena sozinha. Suas personagens são movidas por vaidade, ambição, desejo de controle. Ele não os absolve, tampouco os denuncia. Apenas os expõe. E nisso está sua força: ao escrever, Machado revela. Não educa, não consola. Mostra.


A frase que o define também desnuda a sociedade que ainda insiste em culpabilizar o ambiente, como se o meio fosse mais determinante que a vontade. Machado sabia que há quem use a dificuldade como argumento e quem a transforme em caminho. Sabia que o oportunista não é moldado pela ocasião, apenas encontra nela o cenário ideal. E é justamente essa percepção que torna sua escrita tão atual.


Admiro Machado de Assis não só pela forma impecável com que usava a língua, mas pela firmeza com que enxergava o mundo. Ele não idealizava o povo, não endeusava os miseráveis, não suavizava o ego dos poderosos. Observava todos com a mesma distância e a mesma nitidez. Sua ironia era uma forma de análise. Era sua lente.


Machado escreveu antes de qualquer política identitária, antes da crítica pós-colonial, antes da pauta racial ocupar a centralidade nos discursos. E mesmo assim, permanece incontornável. Não porque tratava desses temas diretamente, mas porque sabia que a condição humana, em qualquer tempo, é sempre complexa, falha, contraditória. E nada disso o escandalizava. Apenas o interessava.


Ele dizia que não se é bom por virtude nem mau por acidente. E essa frase, como tantas suas, ainda fere quem prefere se eximir da responsabilidade pelos próprios atos. Machado não aceitava desculpas. Talvez por isso seja tão difícil classificá-lo. Porque não cabe em nenhuma categoria redentora. Sua literatura é desprovida de ilusões.


E é justamente por isso que ele ainda pulsa. Porque não escreveu para agradar, mas para pensar. E pensar, como sabemos, incomoda. Sua escrita, seca e elegante, nos força a encarar o que preferimos disfarçar. Ler Machado de Assis é se ver sem proteção. É reconhecer que nem sempre as intenções são boas. Que a conveniência molda mais que a ética. Que a ocasião só escancara o que já estava lá.


A frase sobre o ladrão é mais que um aforismo. É uma escolha de olhar. É um alerta contra a vitimização moral. E é também uma chave para compreender a densidade de um autor que não perdoava a burrice, mas não punia a esperteza. Ele não cobrava pureza, cobrava clareza.


Machado de Assis continua sendo um espelho incômodo. Não por falar do outro, mas por nos obrigar a olhar para nós mesmos com menos piedade e mais exatidão. E isso, talvez, seja o maior ato de coragem que um escritor pode oferecer.



Marisa Melo

"Escrevo para não desaparecer. Se algo em mim tocou algo em você, então já não estamos tão sós. " MM

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