Tarsila do Amaral | Passaporte para a Imortalidade
- Marisa Melo

- 3 de jun. de 2024
- 4 min de leitura
A Arte é o espelho da nossa alma. Dorian Gray e Fausto retratam sonhos: beleza, prazer, sabedoria... Oscar Wilde e Goethe souberam captar nosso íntimo, retratar suas épocas e entraram para a História. Esse é o poder da folha, da partitura e da tela em branco. Elas não esperam apenas mais um texto, mais uma canção, mais um quadro. Diante delas, um inglês escreveu “Ser ou não ser”. Um alemão combinou quatro notas mágicas em sua 5ª. Sinfonia. E um italiano pintou um sorriso enigmático. Passaram-se os séculos. E Shakespeare, Beethoven e da Vinci seguem vivos e reverenciados. Nenhum deles planejou isso. Mas ao traduzirem suas almas em suas obras, conquistaram um passaporte para a imortalidade. Quando essa entrega acontece, o observador é conquistado. E aplaude um estilo, que buscará avidamente no próximo quadro. Até criar uma intimidade que lhe permita em segundos relacionar a obra ao autor.
Vamos conversar sobre alguns artistas e seus estilos inconfundíveis.
Hoje conosco, Tarsila do Amaral.

Nascida em 1º de setembro de 1886, em Capivari, interior de São Paulo, e falecida em 17 de janeiro de 1973, na capital paulista, Tarsila atravessou quase um século marcado por transformações intensas no Brasil e no mundo. Vinda de uma família de fazendeiros abastados, cresceu em meio ao contraste entre a vida rural do interior e a formação sofisticada que receberia anos depois na Europa. Sua trajetória pessoal e artística é também a história de um país que buscava construir sua identidade moderna, ao mesmo tempo em que se media com heranças coloniais e o peso de sua desigualdade social.
Tarsila estudou em Paris, onde foi aluna de mestres como André Lhote, Fernand Léger e Albert Gleizes. Foi nesse ambiente que entrou em contato com as vanguardas europeias, especialmente o cubismo, cuja estrutura geométrica se tornaria uma marca em seu trabalho. No entanto, seu mérito maior foi não se limitar a imitar as tendências internacionais: Tarsila retornou ao Brasil decidida a construir uma linguagem própria, que traduzisse a paisagem, as cores e os símbolos tropicais. Assim, foi peça fundamental no grupo dos modernistas, ao lado de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Anita Malfatti, integrando o núcleo que revolucionou a arte nacional após a Semana de 22.
Sua pintura rompeu com o academicismo sem perder a clareza formal. Em “A Negra” (1923), seu primeiro grande marco, há um corpo monumental que ocupa a tela com força arquetípica. A obra sinaliza sua busca por um Brasil profundo, ao mesmo tempo sensual e mítico. Poucos anos depois, em “Abaporu” (1928), presente que ofereceu a Oswald de Andrade, Tarsila cria a imagem que inspiraria o Manifesto Antropofágico, talvez o gesto mais radical da modernidade brasileira: devorar a cultura estrangeira para recriar algo novo, autêntico e brasileiro.
A série Antropofagia amplia essa visão, misturando corpos, animais e paisagens em composições de cores vivas, que ressignificam a herança modernista sob a luz tropical. Mais tarde, em obras como “Operários” (1933), Tarsila se volta ao social, retratando a multiplicidade étnica e a exploração dos trabalhadores que impulsionavam a industrialização de São Paulo. Esse quadro, povoado por rostos diversos que preenchem toda a tela, é leitura contundente de um país em transformação, em que progresso e desigualdade caminham lado a lado.
A linguagem de Tarsila é marcada por um uso expressivo da cor. O rosa, o azul e o verde aparecem em tonalidades intensas, reinventando a paleta tropical. Suas formas simplificadas, por vezes geométricas, ampliam a força das imagens. É como se sua pintura fosse uma tradução visual do projeto de Brasil moderno: colorido, múltiplo, afirmativo.
A vida pessoal de Tarsila também teve momentos de ruptura. O casamento com Oswald de Andrade a colocou no centro da vanguarda intelectual, mas também foi fonte de conflitos e separação. Posteriormente, enfrentou dificuldades financeiras e até a prisão durante o Estado Novo, quando foi acusada de atividades políticas subversivas. Sua trajetória prova que a artista não viveu isolada em ateliê, mas foi parte ativa de um Brasil convulsionado, atravessando vitórias e dores que também moldaram sua arte.
Nos últimos anos de vida, debilitada por problemas de saúde, Tarsila já era reconhecida como ícone da arte nacional. Sua morte, em 1973, encerrou um ciclo pessoal, mas sua obra permaneceu como síntese do modernismo brasileiro. Hoje, suas telas integram acervos internacionais, e seu nome é estudado como parte da história da arte mundial, ao lado dos grandes mestres do século XX.
Tarsila conquistou seu passaporte para a imortalidade porque soube transformar a pintura em um território de invenção nacional. Sua obra é ao mesmo tempo moderna e ancestral, universal e brasileira. Cada tela sua é uma afirmação de que a arte pode ser identidade, manifesto e futuro. No gesto de pintar um corpo monumental, uma planta tropical ou uma multidão de trabalhadores, Tarsila deu forma ao Brasil como projeto estético. E é por isso que, diante de suas cores e formas, não vemos apenas quadros: vemos um país inteiro que buscava se reinventar e que encontrou em sua obra o espelho de sua modernidade.












