Recortes Contemporâneos | Por Que o Texto Curatorial Ainda Importa
- Marisa Melo

- 17 de jul.
- 3 min de leitura
Atualizado: 17 de set.

Em tempos de excesso visual, descrições automáticas e discursos prontos, insistir no texto curatorial pode parecer um gesto antiquado. Há quem o considere dispensável, protocolar, algo que existe apenas para legitimar exposições em ambientes institucionais. Outros o veem como um obstáculo entre a obra e o público, uma barreira de linguagem ou um exercício de vaidade intelectual. No entanto, o texto curatorial não perdeu sua função. O que se perdeu, em muitos casos, foi a sua vitalidade.
Quando esvaziado, o texto curatorial vira enfeite. Veste a obra com palavras que pouco dizem, transforma a experiência em tese, aplica uma camada de formalidade que não aproxima. É nesse uso automático, genérico, que ele se torna descartável. Mas quando nasce do contato real com a obra e com o artista, quando se escreve a partir da convivência com o processo, ele revela. E revelar, hoje, continua sendo um gesto necessário.
O texto curatorial não serve para explicar a obra, serve para criar um campo de leitura possível. Não é um manual, é uma abertura. Um exercício de atenção que propõe aproximação sem impor entendimento. A boa curadoria sabe quando escrever, como escrever e, principalmente, quando o silêncio comunica mais do que qualquer frase. Mas quando a palavra vem, ela é cuidado.
Importa lembrar que a função do texto não é validar o trabalho. A obra não depende do discurso para existir. Mas há obras que se expandem quando são lidas a partir de um contexto mais amplo, de uma linhagem visual, de uma fricção entre tempos. Há trajetórias que ganham clareza quando são pensadas a partir de tensões. O texto, nesses casos, não reduz. Ele sustenta.
Curar não é nomear o que já está pronto, é acompanhar o que ainda está se formando. Por isso, o texto não pode ser apenas descritivo. Também não precisa ser teórico demais. Precisa nascer do contato com a linguagem do artista e também do tempo da obra. Há textos que apagam a produção em nome de conceitos excessivos. Outros que a empobrecem por medo de parecer complexos. O ponto de equilíbrio está na linguagem que lê sem invadir.
Há um tipo de texto que se escreve com o corpo inteiro. Ele não repete o que está visível, nem se protege atrás de jargões. Ele tenta nomear o que está entre as imagens, o que se repete sem anúncio, o que foi escolhido e o que foi omitido. Ele se demora onde a obra hesita. E é nesse intervalo que se constrói a mediação verdadeira.
O público não precisa de uma explicação total. Precisa de contexto, de relações, de chaves que abram perguntas. O bom texto curatorial convida à leitura, mas não a obriga. Ele não tenta conduzir o olhar, apenas propõe caminhos. E quando bem escrito, não se sobrepõe à obra, caminha ao lado.
Num cenário cada vez mais pautado por legendas rápidas, frases de impacto e discursos prontos, o texto curatorial ainda importa porque desacelera. Ele sustenta a elaboração em meio à pressa. Ele ancora o trabalho no seu tempo, na sua intenção, no seu entorno. E mesmo quando é breve, carrega uma escuta que o espectador percebe, ainda que não consiga nomear.
Escrever curatorialmente é um gesto de compromisso. É ler antes de dizer. É não se contentar com o evidente. É reconhecer o risco do artista e devolvê-lo ao público com clareza, sem simplificar. E mesmo quando o texto é mais poético, mais ensaístico ou mais direto, ele carrega a responsabilidade de não banalizar o que foi construído com rigor.
O texto importa porque acompanha a obra sem domesticar. Porque oferece densidade sem sobrepor. Porque permite que o público veja mais do que a imagem. Porque forma olhar. Porque, ao contrário do que se pensa, o bom texto não é o que explica, é o que sustenta a dúvida.
Há textos que ampliam, há textos que esvaziam. A diferença está na precisão e na disposição de não escrever para preencher espaço, mas para afirmar consistência.


