Júlia Dalcastagné e o teatro delicadamente sombrio das identidades
- Marisa Melo
- há 2 dias
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Atualizado: há 1 dia

Há artistas que pintam o mundo visível, suas cenas, seus objetos, suas formas reconhecíveis. Júlia Dalcastagné escolhe um caminho mais raro: ela pinta o que sobra depois que tudo desaba. O que restou no olhar da infância, o que a memória não conseguiu esquecer, o que o inconsciente tenta esconder sob máscaras, babados, sorrisos rasgados.
Sua linguagem pictórica opera num limiar entre o grotesco e o encantatório, como se suas figuras nascessem de um sonho interrompido por um sussurro antigo. São imagens que carregam a pulsação do simbolismo, a melancolia do expressionismo, a teatralidade do pop surrealismo, mas tudo filtrado por uma voz absolutamente autoral. O mundo que Júlia constrói não depende de influências; ele se basta em sua estranheza orgânica, em seus corpos lisos, olhos dilatados, gestos contidos e atmosferas densas como uma infância mal dormida.
Seu estilo é altamente reconhecível: figuras femininas ou andróginas, com semblantes grandes e fundos como abismos, envoltas em figurinos que parecem saídos de um cabaré existencial, uma ópera muda ou uma peça sem plateia. As composições são carregadas, porém balanceadas. Cada elemento carrega peso simbólico, seja uma pena, um laço, um lenço manchado, tudo tem função dentro da narrativa que, mesmo silenciosa, se impõe como quem já viveu uma vida inteira antes de ser pintada.
A paleta de Júlia é calculadamente intensa: tons de sangue e cinza, violetas, pretos lustrosos, brancos mortos, azuis noturnos. Não há cores vivas no sentido celebrativo, mas vivas no sentido de pulsantes. A luz, quando aparece, é quase sempre interior, saindo dos olhos ou de objetos mágicos. É uma iluminação emocional, nunca descritiva.
Há nas obras uma textura que recusa o polimento. A tinta se faz matéria, quase carne, em relevos que reforçam o aspecto tátil, ritualístico e sombrio de sua pintura. Júlia não seduz o espectador, ela o captura. E depois, talvez, o liberte.

Dentro desse teatro de arquétipos feridos, The Hidra se destaca como uma síntese visceral. A criatura de múltiplas asas e presenças não representa apenas o monstro mitológico, mas a própria multiplicidade da mulher contemporânea: desejada e temida, vista e silenciada, exposta e mascarada. A figura central, com olhos oceânicos e máscara quebrada, carrega o peso de todas as outras. É ela quem escuta, quem luta, quem chora por dentro. O vermelho do fundo não é apocalipse, é o sangue que pulsa sob a pele da existência.
A obra se organiza como um ritual, três figuras, uma combustão, uma tensão latente entre o sagrado e o profano. The Hidra é um espelho mitológico que nos devolve nossos próprios monstros com poesia e precisão.
Porque há dores que só o símbolo consola, e Júlia, com sua pintura corajosa e delicadamente cruel, nos dá as imagens que faltavam para nomear o que nos atravessa em silêncio.
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