Georgina de Albuquerque
- Marisa Melo

- 28 de set. de 2020
- 4 min de leitura
Pintura, formação e afirmação em um campo que não lhe foi dado

Escrever sobre Georgina de Albuquerque é reconhecer uma trajetória construída com método, formação e presença ativa em um sistema que raramente abriu espaço para mulheres. Sua obra não nasce do confronto direto nem da ruptura espetacular, mas de um trabalho contínuo de pintura, ensino e atuação institucional, sustentado por escolhas conscientes e domínio técnico.
Georgina de Moura Andrade nasceu em 1885, em Taubaté, interior de São Paulo, e morreu em 1962, no Rio de Janeiro. Sua formação artística se inicia cedo, primeiro no Brasil e depois na França, onde estuda na Académie Julian e entra em contato direto com debates centrais da pintura europeia do início do século XX. Essa experiência é decisiva. Ao retornar ao Brasil, Georgina traz consigo uma compreensão atualizada de cor, composição e estrutura pictórica, sem aderir automaticamente aos radicalismos de vanguarda.
Sua pintura se constrói em diálogo com o impressionismo e com uma tradição figurativa sólida. O interesse pela luz, pelo ambiente e pela organização espacial aparece desde cedo, mas sempre filtrado por uma disciplina técnica rigorosa. Georgina nunca abandona o desenho, e essa escolha define a base de sua linguagem. A forma não se dissolve, se ajusta. A cor não explode, organiza atmosferas.
Ao contrário de muitos de seus contemporâneos, Georgina não se coloca em oposição frontal à tradição acadêmica. Ela a revisa por dentro. Sua obra demonstra que a atualização da pintura brasileira não se deu apenas por ruptura, mas também por continuidade crítica. Essa posição intermediária, muitas vezes subestimada, é uma de suas maiores forças.
Um dos aspectos centrais de sua trajetória é a relação com o ensino. Georgina foi a primeira mulher a dirigir a Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, cargo que ocupou em um contexto ainda profundamente marcado por hierarquias masculinas. Essa atuação não é acessória. Ela compreende a formação como parte do trabalho artístico, como espaço de transmissão de método, disciplina e pensamento visual.
Na pintura, Georgina transita por retratos, paisagens, cenas de interior e composições históricas. Seu interesse pelo cotidiano não se manifesta como observação casual, mas como construção pictórica precisa. Os interiores revelam atenção à disposição dos corpos no espaço, às relações entre figura e fundo, à economia de gestos. Nada é excessivo, nada é improvisado.
A obra Sessão do Conselho de Estado, realizada em 1922, ocupa lugar central em sua produção. Ao representar um episódio da Independência do Brasil sob uma perspectiva feminina, Georgina desloca a narrativa histórica tradicional. A figura de Maria Leopoldina assume protagonismo, não como símbolo decorativo, mas como agente político. A escolha do tema e da abordagem revela uma consciência aguda do papel da pintura histórica na construção do imaginário nacional.
Esse trabalho não deve ser lido como exceção isolada, mas como síntese de um percurso. Georgina compreendia a pintura como ferramenta de leitura do mundo, capaz de organizar narrativas, espaços e hierarquias visuais. Ao colocar uma mulher no centro de uma cena histórica, ela não faz manifesto, faz pintura. A afirmação se dá pela imagem, não pelo discurso.
Sua inserção no modernismo brasileiro é complexa. Georgina participa da vida artística do período, dialoga com mudanças em curso, mas não se identifica plenamente com o espírito de ruptura da Semana de 1922. Essa posição, muitas vezes interpretada como conservadora, merece outra leitura. Georgina escolhe a transformação gradual, sustentada pelo domínio técnico e pela observação atenta das possibilidades da pintura.
Ao longo de sua carreira, manteve uma produção contínua, expôs regularmente e ocupou posições institucionais relevantes. Ainda assim, sua presença na historiografia da arte brasileira foi frequentemente reduzida ou tratada como periférica. Essa redução diz mais sobre os critérios de leitura do que sobre a qualidade de sua obra.
Georgina de Albuquerque construiu uma pintura que resiste ao tempo porque não depende de efeitos circunstanciais. Sua obra se sustenta na relação entre forma, cor e composição, articuladas com clareza e método. Não há pressa, há construção. Cada tela revela uma artista que pensa a pintura como campo de trabalho contínuo, não como gesto episódico.
Ao conquistar seu Passaporte para a Imortalidade, Georgina o faz por ter afirmado uma presença sólida em um sistema que não lhe oferecia espaço pronto. Sua obra permanece relevante porque organiza o olhar, propõe outras narrativas e reafirma a pintura como linguagem capaz de pensar o mundo com precisão e sensibilidade.
Na trajetória de Georgina de Albuquerque, a pintura se apresenta como exercício de afirmação. Ao unir formação, atuação institucional e uma linguagem construída com método, Georgina estabelece um percurso que amplia o espaço da arte brasileira e segue oferecendo referências de clareza, disciplina e pensamento visual.
Este texto integra a coluna Passaporte para a Imortalidade.
Obras emblemáticas de Georgina de Albuquerque

1. Sessão do Conselho de Estado, 1922
Óleo sobre tela
Obra central de sua trajetória. Georgina desloca a pintura histórica ao colocar Maria Leopoldina no centro da decisão política da Independência, reorganizando hierarquias visuais e narrativas do imaginário nacional.

2. Retrato de Mulher, c. década de 1910
Óleo sobre tela
Nos retratos, Georgina constrói figuras sem idealização excessiva. O interesse está na organização do corpo no espaço e na relação entre luz, expressão e composição.

3. Interior com Figura Feminina, c. década de 1920
Óleo sobre tela
As cenas de interior revelam atenção à arquitetura doméstica e à posição do corpo no espaço. A pintura se organiza por equilíbrio e contenção, sem gestos dramáticos.

4. Paisagem Urbana, c. década de 1930
Óleo sobre tela
Na paisagem, Georgina observa a cidade sem efeitos grandiosos. O espaço é tratado como construção pictórica, com atenção à luz e à organização das formas.






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