Anita Malfatti | Passaporte para a Imortalidade
- Marisa Melo

- 5 de jun. de 2023
- 3 min de leitura
A Arte é o espelho da nossa alma. Dorian Gray e Fausto retratam sonhos: beleza, prazer, sabedoria... Oscar Wilde e Goethe souberam captar nosso íntimo, retratar suas épocas e entraram para a História. Esse é o poder da folha, da partitura e da tela em branco. Elas não esperam apenas mais um texto, mais uma canção, mais um quadro. Diante delas, um inglês escreveu “Ser ou não ser”. Um alemão combinou quatro notas mágicas em sua 5ª. Sinfonia. E um italiano pintou um sorriso enigmático. Passaram-se os séculos. E Shakespeare, Beethoven e da Vinci seguem vivos e reverenciados. Nenhum deles planejou isso. Mas ao traduzirem suas almas em suas obras, conquistaram um passaporte para a imortalidade. Quando essa entrega acontece, o observador é conquistado. E aplaude um estilo, que buscará avidamente no próximo quadro. Até criar uma intimidade que lhe permita em segundos relacionar a obra ao autor.
Vamos conversar sobre alguns artistas e seus estilos inconfundíveis.
Hoje conosco, Anita Malfatti.

Anita Malfatti nasceu em São Paulo no fim do século XIX. Viveu entre 1889 e 1964, atravessando um período de mudanças radicais na cultura brasileira e mundial. Filha de imigrantes europeus, cresceu em uma família que lhe deu disciplina, mas também espaço para a sensibilidade. Desde pequena enfrentou uma limitação física no braço direito. Esse detalhe, longe de ser apenas obstáculo, se converteu em parte de sua identidade: pintora pela mão esquerda, artista forjada pela superação. É nesse gesto de adaptação que se pode ler a essência de sua obra, feita de resistência, reinvenção e inconformismo.
Ainda jovem buscou ampliar horizontes além do Brasil. Estudou em São Paulo, mas foi nos Estados Unidos que teve contato com o expressionismo e o vigor da pintura moderna. Mais tarde, na Alemanha, mergulhou no ambiente efervescente das vanguardas europeias. Desses anos de aprendizado, trouxe um olhar renovado: cores intensas, deformações expressivas, pinceladas livres, tudo destoava da rigidez acadêmica que ainda dominava a cena brasileira.
Foi em 1917, com a Exposição de Pintura Moderna em São Paulo, que Anita protagonizou sua primeira ruptura. Quadros como O Homem Amarelo, A Estudante e O Japonês não eram apenas exercícios formais, mas declarações de um novo tempo. As figuras distorcidas e os tons vibrantes desconcertaram o público. Para alguns, eram telas revolucionárias; para outros, sinais de desordem ou mesmo de loucura. Monteiro Lobato cristalizou essa rejeição em seu texto Paranoia ou Mistificação?, que atacava não apenas as obras, mas a própria ideia de modernidade artística.
A crítica feriu Anita. Durante certo tempo, buscou suavizar sua linguagem, aproximando-se de composições mais aceitáveis ao gosto dominante. Mesmo assim, a força expressionista permanecia latente. Seus retratos continuaram carregados de intensidade psicológica, suas naturezas-mortas guardavam uma vibração interna que ia além do exercício acadêmico. Anita não se dobrou totalmente; apenas modulou seu gesto para continuar criando.
Em 1922, quatro anos após o episódio de 1917, ela se uniu a Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia e, pouco depois, Tarsila do Amaral. Juntos, deram corpo à Semana de Arte Moderna. Anita, que já havia aberto a fenda inicial, consolidou sua posição como pioneira do modernismo no Brasil. Sua presença no palco do Theatro Municipal simbolizava o reencontro com a ousadia que a crítica havia tentado calar.
Os anos seguintes foram mais silenciosos, mas não menos relevantes. Anita dedicou-se ao ensino, transmitindo sua experiência a novas gerações de artistas. Em sala de aula, continuou o gesto inaugural: formava não apenas pintores, mas olhares, convidando os alunos a pensar além da forma, a assumir riscos, a buscar autenticidade.
Morreu em São Paulo, em 1964, aos 74 anos. Partiu reconhecida como pioneira, mas também como artista que enfrentou incompreensões, silêncios e críticas ferozes. Sua trajetória foi marcada por contrastes: ousadia e retração, aplauso e rejeição, reconhecimento e marginalização. Mas foi nesse caminho sinuoso que se construiu sua grandeza.
Anita Malfatti conquistou seu passaporte para a imortalidade ao desafiar a ordem estabelecida e inaugurar, com coragem, a modernidade no Brasil. Suas pinturas, ainda hoje, carregam a energia do gesto inaugural, lembrando que o novo nunca surge sem resistência. O modernismo brasileiro tem muitas vozes, mas sua primeira nota dissonante ecoou pelas mãos de Anita Malfatti.














