Natan D’Sampa e o crepúsculo que arde no íntimo: sobre a obra Apocalipse
- Marisa Melo
- 21 de dez. de 2023
- 2 min de leitura
Atualizado: 17 de mai.

A obra Apocalipse, de Natan D’Sampa, é um presságio. Um clamor visual que nos alcança antes mesmo de compreendermos suas formas. Em acrílica sobre tela, com dimensões amplas de 90x120 cm, o artista constrói uma cena que parece emergir do próprio ventre da terra, onde cor, fé e catástrofe se entrelaçam em uma tensão quase litúrgica.
O centro da imagem é ocupado por uma figura grandiosa de Jesus, em postura ereta, olhos voltados ao céu, como quem intercede por uma humanidade à beira do abismo. Ele não está ali para julgar, mas para testemunhar, para sustentar com o olhar o que ainda pode ser salvo.
Abaixo dele, a cidade em chamas, engolida por nuvens incendiárias e raios cortantes, não representa apenas a destruição do mundo físico, mas a implosão moral de uma era. É um retrato do fim, mas também da súplica.
As cores são abrasivas, não pela violência, mas pela urgência. Laranjas incandescentes, vermelhos inquietos e amarelos que parecem cuspir fogo compõem a base do apocalipse terreno. O céu, em tons azulados e escuros, abre espaço para o contraste, para o silêncio após a explosão. E ali, entre as duas camadas, o alto e o baixo, o divino e o humano, habita o mistério que a pintura propõe.
A escolha de apresentar essa obra em tempo de Natal não é aleatória. É um gesto deliberado de inversão e convite. Enquanto o mundo se prepara para o nascimento de Cristo, Natan nos oferece a imagem do seu retorno, envolto não em cânticos celestiais, mas em fumaça, raios e clamor. A ideia de recomeço passa, aqui, pelo fim. O nascimento e o apocalipse dividem o mesmo palco.
Mas talvez o maior valor dessa pintura esteja naquilo que ela nos pede em silêncio: um exame interno. Natan nos sugere que o verdadeiro apocalipse não acontece fora, mas dentro. É o colapso da consciência, é o adormecimento espiritual, é o esquecimento do outro. E é justamente nesse colapso íntimo que a figura de Cristo se torna espelho, não para nos acusar, mas para nos lembrar do que fomos feitos.
Com técnica sólida, domínio do chiaroscuro e um olhar afinado para o simbólico, Natan D’Sampa constrói uma obra que não apenas impressiona, mas reverbera. Não termina na parede, continua no pensamento, nas entranhas, nos silêncios que ela impõe.
Apocalipse é um portal. E quem se permite atravessá-lo talvez reencontre, na própria ruína, a semente de uma nova construção.
“A pintura de Natan não representa o fim do mundo, representa o instante em que somos chamados a decidir o que queremos preservar. E em que acreditamos, de verdade, renascer.” Marisa