Tentativas de humanidade
- Marisa Melo

- 18 de jul.
- 3 min de leitura

Ninguém está inteiro. Uns disfarçam melhor. Outros fazem piada. Muitos seguem ocupados demais para perceber. Mas basta observar de perto. Há um esgotamento que não aparece na pele. Uma tristeza que se acomoda no meio das tarefas. Uma sensação de desalinho que persiste, mesmo em dias bons.
E ainda assim, resistimos. Às vezes, de forma quase imperceptível. Um café deixado na mesa do colega. Um elogio honesto num ambiente seco. Uma mensagem enviada sem motivo, só para lembrar que existe alguém do outro lado. Pequenos gestos que não consertam o mundo, mas dizem, discretamente, que ainda há gente tentando não adoecer de indiferença.
Há quem diga que são só detalhes. Que não mudam nada. Mas talvez mudem. Porque num tempo em que tudo é veloz, imediato, superficial, um gesto que para, que observa, que se oferece sem segunda intenção, tem força. É um ato genuíno ser gentil sem buscar vantagem. Ouvir sem precisar opinar. Estar sem querer ser visto.
A solidão não vem mais só da ausência. Vem do excesso. Excesso de gente, de estímulo, de contato. Conversamos o tempo todo, mas poucas vezes com real intenção. As palavras perderam peso. As relações perderam densidade. E, no meio disso tudo, há quem ainda insista em cuidar.
Cuidar não no sentido grandioso, mas no ordinário. Cuidar é reparar quando o outro está estranho e não se afastar. É perceber a mudança de tom e não fingir que não ouviu. É lembrar o nome do filho, da dor, da data. Não para parecer atencioso, mas porque se prestou atenção de verdade. Isso, que deveria ser o mínimo, virou quase heroísmo.
As tentativas de humanidade não sobem para o feed, não acumulam curtidas, não geram nota de rodapé. Mas sustentam laços que o mundo já teria quebrado. Gente que aparece quando ninguém está olhando. Que não precisa ser chamada para se fazer presente. Que sabe respeitar o espaço, mas também sabe quando atravessá-lo.
É um tipo de sensibilidade que não se ensina. Mas se percebe. E quando percebida, muda o ambiente. Um lugar com uma pessoa inteira dentro já é outro lugar. Porque estar inteiro não é estar disponível sempre, nem ser impecável. É ser verdadeiro. É não operar só por obrigação. É manter alguma coerência entre o que se sente e o que se oferece.
Ainda que a maioria prefira não se envolver, há sempre quem escolha o contrário. E essas escolhas, mesmo discretas, fazem diferença. Nem que seja só para uma pessoa. Nem que dure pouco. Nem que seja no susto.
Ser humano hoje exige mais do que antes. Exige atenção num tempo disperso. Exige coragem para não fugir do desconforto. Exige cansaço e, ao mesmo tempo, generosidade. Porque quem está atento também se desgasta mais. Mas não se abandona. E nem abandona os outros com facilidade.
Não é heroísmo. É insistência. Insistir em olhar nos olhos. Em dizer bom dia com verdade. Em escutar sem checar o celular. Em não rir por educação. Em lembrar que cada um carrega mais do que mostra. E que, talvez, o outro só esteja conseguindo continuar porque alguém ofereceu um pouco de presença no meio do caos.
São essas tentativas que nos mantêm gente. Não as grandes ideias, nem os discursos corretos, nem os posicionamentos públicos. Mas os gestos pequenos, contínuos, quase invisíveis. Aquilo que não precisa ser dito, porque foi sentido.
E se hoje ainda é possível confiar em alguém, amar alguém, se deixar alcançar por alguém, é porque existem pessoas assim. Que mesmo falhando, mesmo cansadas, mesmo na contramão, ainda escolhem o cuidado. Sem plateia. Sem enfeite. Sem pressa.
Marisa Melo
“Escrevo sobre o que vejo, o que engulo, o que quase digo. Se você também anda duvidando da humanidade, senta aqui. Tem lugar. A pergunta segue: ainda somos gente?” MM

