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Quero ser todo esse sangue que transborda sem coagular

  • Foto do escritor: Marisa Melo
    Marisa Melo
  • 6 de ago.
  • 2 min de leitura

Atualizado: 21 de out.

Depois do fim, Ainda eu — 2020, p. 73_MM
Depois do fim, Ainda eu — 2020, p. 73_MM

Há quem viva para controlar os impulsos, para regular a emoção como quem dosa o sal na comida: comedida, exata, aceitável. Gente que aprende cedo a aparar os excessos, a responder com filtro, a administrar a própria intensidade como se fosse vício. Eu não. Eu quero ser o que transborda. O que escapa. O que mancha.


Quero ser todo esse sangue que não coagula. Que não se apressa em cicatrizar. Que se espalha e diz: ainda estou viva, ainda arde. Porque há uma dignidade em não fechar feridas às pressas. Uma inteireza em sentir até o fim, sem atalhos. E isso não tem nada de nobre ou bonito. É só humano demais. Orgânico demais. Carne que pulsa sem pedir permissão.


O mundo, esse grande hospital asséptico de expectativas, insiste em curar rápido o que dói. Não se pode sofrer muito, nem amar demais, nem se abalar por pouco. Existe um tempo social para o luto, outro para seguir em frente, outro ainda para fingir que já se esqueceu. E se a ferida ainda estiver aberta? E se não quiser fechar?


Há quem ache desequilíbrio, imaturidade. Mas talvez a medida do desequilíbrio seja, na verdade, a recusa a ser morno. Quem sangra sem coagular vive no risco da exposição, é verdade. Não tem couraça, tem nervo. Mas também não tem medo do que sente. E isso, num tempo que exige contenção e performance, já é uma forma de coragem.


Quero ser o sangue que diz o que não cabe em frase pronta. Que não espera a ocasião certa. Que não decanta para ficar mais apresentável. Porque sentir, realmente sentir, tem algo de indecente. De fora do script. A sociedade inteira é construída para que as pessoas disfarcem suas urgências, seus apegos, suas saudades desmedidas. Como se existir com intensidade fosse falha de caráter.


Mas há uma beleza em viver sem anestesia. Mesmo quando dói. Mesmo quando dá trabalho. Mesmo quando cansa. Porque viver pela metade economiza dor, sim, mas também rouba o gosto. E eu prefiro a vertigem da carne viva ao conforto da superfície.


Quero amar como quem sangra. Chorar até esgotar. Me apegar sem disfarce. Não quero me proteger tanto a ponto de esquecer que estou viva. Não quero coagular o que ainda pulsa. Não quero curar o que ainda precisa sangrar mais um pouco.



Marisa Melo


Nem tudo que sangra é ferida. Há dores que não pedem cura, pedem espaço. Algumas não querem desaparecer, querem existir com dignidade, ocupar o tempo que for necessário. Sentir, às vezes, é permitir que algo permaneça aberto, não por fraqueza, mas por lealdade ao que se viveu. Há um tempo para arder e outro para cicatrizar. Ambos merecem respeito. MM

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