Os Gêmeos, o sonho amarelo que nasceu nas ruas de São Paulo
- Marisa Melo
- há 5 dias
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Atualizado: há 4 dias

Há uma São Paulo que pulsa abaixo da superfície do concreto, uma cidade imaginária feita de personagens de olhos semicerrados, roupas vibrantes e rostos de cor mostarda. Essa cidade paralela, que escapa pelas rachaduras dos muros e toma corpo em fachadas, galerias e museus ao redor do mundo, nasceu do gesto espelhado de dois irmãos, Otávio e Gustavo Pandolfo, conhecidos por todos como Os Gêmeos.
Criados no bairro do Cambuci, na zona central de São Paulo, começaram a desenhar ainda crianças, dividindo o mesmo papel, a mesma fantasia. Desde muito cedo, demonstraram uma linguagem própria, uma espécie de língua visual que escapava da realidade cinzenta da década de 1980 e oferecia uma porta de entrada para um mundo interior povoado por figuras oníricas, ingênuas e ferozmente expressivas.
Foi em 1987, influenciados pela cultura hip hop que ganhava força nos arredores da estação São Bento, que começaram a experimentar o grafite como meio. O muro, até então suporte da violência cotidiana, tornou-se tela. A rua, galeria. A cidade, matéria-prima para a imaginação. E o traço deles, singular, espontâneo, melancólico, não passou despercebido. Na virada dos anos 2000, Os Gêmeos já eram lidos como ícones da arte urbana latino-americana, levando a estética brasileira para além das fronteiras e conquistando espaços até então inacessíveis para artistas de rua.
Mas sua ascensão não implicou renúncia às origens. Pelo contrário. Há algo de profundamente brasileiro em tudo o que produzem. Os tons do barro, os instrumentos populares, o desfile das escolas de samba, o misticismo, o improviso. As figuras que criam, quase sempre de pele amarela, não são alienígenas, são arquétipos dos nossos dias, o menino sonhador, a mulher silenciosa, o músico anônimo, o andarilho que observa tudo. São seres que carregam memórias coletivas, traumas e alegrias, envoltos numa paleta que parece ouvir o que não é dito.

Entre seus trabalhos mais emblemáticos, destaca-se o monumental mural "Giants", criado em 2014 para a Vancouver Biennale. Ali, transformaram seis silos industriais com 23 metros de altura em personagens coloridos, utilizando mais de 1.200 latas de tinta spray, um feito técnico e poético que reafirma o poder do grafite como arte pública monumental. Também é impossível esquecer o mural pintado na fachada da Tate Modern, em Londres, em 2008, durante a exposição Street Art, quando o grafite brasileiro não apenas entrou em uma das maiores instituições de arte do mundo, como também alterou sua paisagem externa com cor, ironia e lirismo.

Em São Paulo, deixaram marcas indeléveis, como o mural conhecido como “Gigante do Minhocão”, pintado em 2009 em uma empena cega à beira do Elevado Presidente João Goulart. A figura amarela que observa a cidade de cima, serena e silenciosa, tornou-se parte da paisagem e da memória coletiva da metrópole, um vigia poético acima do caos urbano.
Mas foi em 2020, dentro da Pinacoteca de São Paulo, que Os Gêmeos assinaram um dos capítulos mais reveladores de sua trajetória. A exposição “Segredos” apenas uma mostra, foi uma espécie de abertura de baú, aquele que se guarda sob a cama ou no fundo de um quarto da infância, onde tudo o que é íntimo e essencial repousa em silêncio.
Durante meses, Gustavo e Otávio prepararam uma seleção que ia muito além de murais. Reuniram mais de mil peças entre desenhos antigos, cadernos de anotações, objetos guardados com afeto, esculturas, instalações, vídeos e obras inéditas. Cada sala da Pinacoteca parecia respirar com eles, suas memórias, suas manias, seus rascunhos de mundo.
E foi ali, entre o Octógono e as galerias silenciosas do museu, que o público teve a rara chance de entrar na casa imaginária dos dois irmãos. Ver de perto como a poesia visual que corre pelas ruas nasce de um lugar profundamente pessoal. Não havia espetáculo, havia entrega. Era como se dissessem, aqui estão nossos segredos, partilhem deles.
“Segredos”, segundo os próprios artistas, foi a exposição mais importante de suas vidas. Não por números ou reconhecimento, mas pela coragem de mostrar o avesso do processo, as dobras da criação, as raízes que nunca deixaram de alimentar sua arte. Foi um momento de consagração, sim, mas sobretudo de confissão, uma forma de estar inteiro diante do outro.
Já em 2023, no prestigiado Hirshhorn Museum, em Washington, a exposição "Endless Story" apresentou ao público internacional a complexidade e maturidade dos Gêmeos, reafirmando sua posição como artistas globais que não esqueceram suas raízes. Suas obras, hoje, habitam cidades como Nova York, Berlim, Lisboa, Milão, Boston, Paris. Mas continuam, também, espalhadas por vielas discretas de bairros brasileiros, onde o grafite ainda pulsa como resistência.
Mais que artistas urbanos, Os Gêmeos são narradores visuais de um Brasil profundo, que dança entre o sonho e a escassez, entre o riso e o abandono. Sua obra não é só cor, é também som, movimento e memória. É um convite para olhar o mundo como eles aprenderam a ver desde pequenos, com os olhos semicerrados de quem sabe que a realidade pode ser reinventada.

"Admiro profundamente o que Os Gêmeos construíram, com mãos firmes e imaginação sem fronteiras. Eles não apenas transformaram muros em poesia, como revelaram ao mundo o Brasil que sonha, que resiste, que inventa beleza onde ela não era esperada. Há algo de monumental e ao mesmo tempo íntimo em cada figura que criam, como se tocassem tudo aquilo que guardamos em segredo. O que fizeram pela arte no país e fora dele é, para mim, uma das maiores declarações de liberdade estética e sensível do nosso tempo." — Marisa Melo