Francisca Ohlsen: quando o rio é memória, e a estopa é pele
- Marisa Melo

- 28 de dez. de 2023
- 2 min de leitura
Atualizado: 17 de set.

"Recordar não é reviver, é permitir que o passado se torne presente de outra forma”, escreveu Walter Benjamin. Essa frase poderia muito bem introduzir o gesto de Francisca Ohlsen, artista brasileira radicada na Alemanha, que carrega a memória como matéria essencial da criação. Em suas pinturas, ela não apenas traz à tona imagens do Brasil, mas devolve ao olhar fragmentos de um país que permanece mesmo à distância. Sua obra não é reconstrução idealizada, mas devolução: um oferecimento sensível daquilo que poderia ser esquecido, transformando a tela em espaço de presença afetiva.
Sua escolha de suporte revela muito mais do que uma decisão formal. Ao utilizar a estopa, Francisca insere a matéria como parte do discurso. A superfície áspera, marcada pela textura rústica, aproxima a pintura do chão, da pele, daquilo que é corpo e território. Não se trata de um pano neutro, mas de uma base que respira junto com as figuras. Sobre ela, as cores vibram. Adquirem densidade.
Em Mulheres na Beira do Rio, o que se vê é uma cena cotidiana, mas filtrada por uma sensibilidade que a retira da banalidade. As mulheres curvadas à beira d’água, crianças correndo, baldes coloridos espalhados como frutos da margem. Nada é idealizado, tudo é experiência. A pintura guarda a atmosfera da vida simples e a transforma em memória partilhada.

“Índias na Beira do Rio”, mergulha ainda mais fundo no íntimo. Mãe e filha dividem o tempo entre o trançar dos cabelos e o silêncio do rio. Duas presenças entrelaçadas por um gesto ancestral. Enquanto isso, ao fundo, outras crianças brincam na água, e o cenário pulsa com uma tranquilidade que é presença. A artista não romantiza, tampouco congela. Ela observa. E, ao pintar, compartilha conosco esse olhar terno, quase sussurrado.
Francisca, formada e residente na Alemanha, carrega consigo a distância. Mas sua pintura é prova de que a distância não é ausência. Pelo contrário: é o que permite ver com mais nitidez. E é isso que se percebe em cada obra: um Brasil visto desde longe, mas sentido bem de perto.
Sua paleta é quente, mas não explosiva. Os tons terrosos predominam, costurados com verdes úmidos, azuis de correnteza e vermelhos que surgem como pontos de memória. As figuras não estão detalhadas ao extremo, e não precisam. Elas são reconhecíveis não pela nitidez, mas pelo afeto. O que ela pinta não são corpos. São presenças.
Ao escolher a estopa como superfície, Francisca reafirma algo que percorre toda sua poética: a arte como matéria de contato. Não é uma arte para ser apenas vista. É para ser sentida. Como se cada pincelada carregasse o cheiro da beira do rio, o som das águas misturado aos risos, o calor do corpo dobrado sobre a roupa ensaboada.
Essas obras, reunidas no Catálogo de Natal da UP Time, estão disponíveis para aquisição. Mas o que se leva para casa ao adquiri-las vai além de uma composição bem feita. Leva-se uma história que não está no papel, mas na lembrança da artista. Um fragmento de país, de tempo, de intimidade partilhada.


