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Mark Rothko e a arquitetura da cor

Atualizado: há 3 dias

Alguns artistas permanecem porque sua obra continua exigindo leitura, tempo e confronto. Não se trata de consagração nem de consenso histórico, mas da capacidade de sustentar uma linguagem que resiste à passagem dos anos e às mudanças de contexto. É nesse ponto que a arte deixa de ser apenas produção de época e passa a ocupar um lugar mais duradouro, ligado à forma como pensamos, vemos e reconhecemos certas imagens como incontornáveis.


A coluna Passaporte para a Imortalidade parte desse princípio. Cada texto busca compreender como determinados artistas construíram uma obra capaz de se manter ativa, não por repetição de fórmulas, mas por rigor, coerência e decisão estética. Mais do que celebrar nomes, interessa observar percursos, escolhas e modos de trabalho que seguem produzindo sentido muito depois de seu tempo imediato.


Hoje, o olhar se volta para Mark Rothko.


Retrato de Riotto diante de grandes campos de cor em tons de vermelho, laranja, amarelo e azul, composição que remete à pintura abstrata de grandes planos cromáticos e ao debate sobre cor, escala e percepção na arte moderna.
Mark Rothko

A pintura de Mark Rothko não se apresenta como imagem a ser decifrada, mas como situação a ser enfrentada.


Diante de suas telas, o espectador não encontra figura, narrativa ou símbolo reconhecível. Encontra um espaço construído exclusivamente pela cor, organizado para manter o olhar em estado contínuo de atenção. Não há repouso visual nem ponto de fuga. O que se estabelece é uma relação direta entre superfície, escala e tempo de observação.


Rothko nasce em 1903, em Dvinsk, então parte do Império Russo, e emigra ainda criança para os Estados Unidos. Sua formação passa por experiências diversas, estudos interrompidos, contato inicial com o desenho figurativo e com tradições modernas europeias. Nos anos 1930 e 1940, sua pintura ainda se ancora em figuras, mitologias e composições narrativas. Esse período não deve ser visto como ensaio menor, mas como laboratório. É ali que Rothko começa a abandonar a ilustração e a compreender que o problema central de sua pintura não era o tema, mas a organização do espaço pictórico.


A partir da década de 1950, sua obra se reorganiza de forma radical. As figuras desaparecem, não como gesto abrupto, mas como consequência de um processo de depuração rigoroso. Permanecem grandes áreas cromáticas, dispostas verticalmente, com limites imprecisos, suspensas sobre fundos instáveis. Essas áreas não se encaixam, não se fecham, não se resolvem em contornos definidos. O espaço da tela passa a ser construído por relações de proximidade, peso e respiração visual.


A técnica adotada por Rothko é decisiva para compreender o efeito de suas pinturas. Ele trabalha com sucessivas camadas de tinta diluída, aplicadas de modo a criar profundidade sem recorrer ao desenho. As bordas permanecem móveis, como se a cor estivesse sempre em processo de reorganização. Nada se solidifica por completo. Nada se dissolve. Essa instabilidade permanente impede a leitura rápida e sustenta o olhar em suspensão.


A escala das telas não é monumental por excesso, mas por necessidade. Rothko amplia o formato para controlar a distância entre obra e observador. Ele exigia que suas pinturas fossem vistas de perto, em ambientes silenciosos, com iluminação contida. Não se trata de criar efeito cenográfico, mas de restringir o campo perceptivo. O olhar não percorre a tela, permanece diante dela. O corpo do espectador é convocado a sustentar essa permanência.


Frequentemente associada a experiências espirituais, a obra de Rothko exige uma leitura mais precisa. O que ele constrói não é transcendência nem elevação. Suas telas operam por contenção. A cor não se expande para fora, se acumula. A atmosfera não se dissipa, se adensa. O resultado é uma pintura que não oferece resposta nem consolo, mas exige convivência prolongada com a instabilidade que ela mesma produz.


Esse posicionamento explica decisões fundamentais de sua trajetória. Em 1958, ao aceitar a encomenda dos murais para o restaurante Seagram, em Nova York, Rothko inicialmente vislumbra a possibilidade de criar um conjunto fechado, denso, quase opressivo. Ao perceber que as obras seriam absorvidas pela lógica social do espaço de luxo, recua. A recusa não é moral, é estrutural. A pintura que ele produzia não suportava funcionar como fundo, ornamento ou cenário.


Nos anos finais, sua paleta se torna ainda mais restrita. Tons escuros, variações de preto, vinho, marrom e cinza passam a dominar a superfície. Essa redução cromática não pede leitura biográfica simplificada. Ela corresponde a uma investigação mais severa da pintura como limite. Menos contraste, menos variação, mais pressão visual. As telas desse período não dramatizam, não narram, não simbolizam. Elas sustentam um estado contínuo de densidade.

 um estado contínuo de densidade.


É por essa radicalidade que Mark Rothko conquista seu passaporte para a imortalidade. Não porque tenha criado um estilo reconhecível, mas porque redefiniu o que a pintura pode exigir do olhar. Ao eliminar figura, narrativa e símbolo, ele não empobreceu a imagem, tornou-a mais exigente. Sua obra não se apoia em contexto, discurso ou explicação, ela se sustenta no tempo que impõe ao espectador. Enquanto houver alguém disposto a permanecer diante da cor sem garantias, sem atalhos e sem promessa de sentido imediato, suas telas continuarão ativas. Rothko não legou imagens, legou uma experiência que resiste ao desgaste do tempo justamente por não se resolver.




N 61 (Rust and Blue), 1953 Mark Rothko
N 61 (Rust and Blue), 1953 Mark Rothko




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