Di Cavalcanti | Passaporte para a Imortalidade
- Marisa Melo

- 3 de mar. de 2024
- 3 min de leitura
A Arte é o espelho da nossa alma. Dorian Gray e Fausto retratam sonhos: beleza, prazer, sabedoria... Oscar Wilde e Goethe souberam captar nosso íntimo, retratar suas épocas e entraram para a História. Esse é o poder da folha, da partitura e da tela em branco. Elas não esperam apenas mais um texto, mais uma canção, mais um quadro. Diante delas, um inglês escreveu “Ser ou não ser”. Um alemão combinou quatro notas mágicas em sua 5ª. Sinfonia. E um italiano pintou um sorriso enigmático. Passaram-se os séculos. E Shakespeare, Beethoven e da Vinci seguem vivos e reverenciados. Nenhum deles planejou isso. Mas ao traduzirem suas almas em suas obras, conquistaram um passaporte para a imortalidade. Quando essa entrega acontece, o observador é conquistado. E aplaude um estilo, que buscará avidamente no próximo quadro. Até criar uma intimidade que lhe permita em segundos relacionar a obra ao autor.
Vamos conversar sobre alguns artistas e seus estilos inconfundíveis.
Hoje conosco, Emiliano Di Cavalcanti.

Trajetória e estilo
Emiliano Di Cavalcanti veio ao mundo no Rio de Janeiro, em 1897, e ali também encerrou sua trajetória em 1976. Entre essas datas se desenrola uma vida que não cabe apenas em cronologias, mas em um legado que fez da arte brasileira um reflexo de sua própria vitalidade.
Criado em um ambiente de classe média, aproximou-se cedo do desenho e da literatura, mas nunca se restringiu a papéis ou funções. Foi caricaturista, jornalista, agitador cultural e, sobretudo, pintor. Essa multiplicidade não foi acaso, mas marca de uma obra que se alimentava da rua, da música, da boemia e das contradições sociais de seu tempo.
Embora tenha iniciado a formação em direito, trocou rapidamente as salas acadêmicas pela intensidade dos cafés e redações. Nesse meio se aproximou de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, companheiros no desejo de inventar uma arte que falasse a língua do Brasil. Sua participação na Semana de Arte Moderna de 1922 foi decisiva: não apenas mostrou pinturas, mas ajudou a criar o ambiente intelectual e político que daria ao modernismo brasileiro sua identidade.
Seu estilo se caracteriza pelo uso expressivo da cor, pelo traço vigoroso e pela escolha de temas populares. As mulatas sensuais, as rodas de samba, as procissões religiosas e os bailes suburbanos tornaram-se símbolos de sua pintura. Se outros artistas modernistas voltavam-se para a experimentação formal, Di Cavalcanti buscava fundir a
modernidade com o espírito nacional, transformando o cotidiano em ícone.

Obras emblemáticas
Entre suas obras mais conhecidas estão Cinco Moças de Guaratinguetá (1930), Mangue (1929) e Samba (1925), pinturas que representam a síntese de sua linguagem: corpos femininos exuberantes, atmosfera de festa e uma sensualidade que, mais do que erótica, é afirmação cultural.
Sua pintura não idealiza a realidade, mas a enaltece, dando visibilidade a personagens e ambientes que a elite ignorava. As mulheres negras, muitas vezes retratadas com imponência e orgulho, tornaram-se emblemas da identidade brasileira em sua obra. Nelas, a sensualidade é atravessada pela força, e a festa carrega tanto alegria quanto denúncia das desigualdades.
Além da pintura, Di Cavalcanti atuou como ilustrador de livros e capas de revistas, colaborando com autores modernistas e ampliando a circulação de sua estética. Durante sua vida, expôs em diversas bienais de São Paulo e representou o Brasil em exposições internacionais, consolidando-se como um dos rostos do modernismo brasileiro.
Também é preciso lembrar seu engajamento político. Simpatizante do socialismo, retratou a vida dos trabalhadores e os contrastes sociais com olhar crítico. Essa dimensão engajada não anula o lirismo de sua obra, mas o amplia: cada cena de samba ou procissão é, ao mesmo tempo, celebração e registro histórico.
Emiliano Di Cavalcanti conquistou seu passaporte para a imortalidade ao construir uma linguagem capaz de traduzir o Brasil moderno sem apagar suas raízes populares. Sua obra permanece atual porque não é apenas estética, mas política; não apenas sensual, mas crítica. Ele mostrou que a arte brasileira podia ser universal sem perder sua cor local, podia dialogar com o cubismo ou o expressionismo sem trair o batuque do samba ou a devoção popular.
Ao olhar para suas telas, vemos não só formas e cores, mas a afirmação de um país que buscava sua própria voz. Sua pintura continua sendo referência porque conjuga prazer visual, crítica social e identidade cultural em uma síntese rara.
Di Cavalcanti morreu no Rio de Janeiro em 1976, mas sua presença persiste nos museus, nas coleções e na memória cultural. Sua arte nos recorda que o Brasil é múltiplo, contraditório e exuberante, e que a modernidade, para nós, só faz sentido quando dialoga com a rua, com o povo e com a festa.
É por isso que, mesmo décadas após sua morte, Di Cavalcanti permanece vivo. Seu legado é um convite permanente para olhar o Brasil em suas cores mais intensas.









