Celio Amorth: Entre a precisão e a ruptura, o corpo como espaço
- Marisa Melo
- há 4 dias
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Celio Amorth pinta como quem toca uma ferida. Com cuidado, mas sem medo. Nascido em 1996, no interior de Mato Grosso, carrega nas mãos a urgência de quem sempre desenhou não por vaidade, mas como tentativa de compreender, e talvez sobreviver, ao mundo que o atravessa.
Seu início no desenho foi necessidade. Um gesto quase involuntário, impelido por algo que não cabia em palavras. Em 2018, essa urgência reencontrou seu corpo e ganhou forma no fotorrealismo. Celio mergulhou nessa linguagem, buscando na precisão dos traços a possibilidade de nomear suas angústias, suas obsessões, os silêncios de dentro.
Durante esse período, estudou com dedicação: Autodidata entre 2018 e 2020, aprimorou sua técnica sob a orientação de mestres como Charles Laves, Maira Poli, Samuel Torres, Rafael Konishi e Jader Ferrari. Mas como todo artista que escuta com honestidade sua trajetória, percebeu que a maestria técnica, por si só, não bastava.
O fotorrealismo, que antes era abrigo, começou a se tornar prisão. A rigidez da fidelidade absoluta à imagem passou a limitar sua expressão. Faltava corpo. Faltava falha. Faltava gesto.
É nesse ponto de ruptura que Celio reencontra a arte como liberdade. Migra para o figurativo contemporâneo, como escolha de vida. Seu trabalho passa a respirar em outras superfícies. A mão não busca mais copiar, mas sentir. Ele abandona o rigor milimétrico e se permite deixar rastros, borrar contornos, escutar o tecido da pele, o peso do gesto, o mistério do que não se mostra por inteiro.
A paleta de Celio é contida, elegante, muitas vezes com tons velados. Os ocres, os brancos esmaecidos, os tons de pele sutilmente modulados, os fundos ambarinos, tudo é pensado para sustentar a densidade emocional de suas imagens sem cair no excesso. Há um refinamento nos silêncios cromáticos que ele constrói, como se a cor também falasse por ausência.
Em suas obras, o corpo aparece em fragmento. Mãos, pulsos, braços, dobras de tecidos. Ele retira os rostos, silencia as expressões óbvias, e nos força a olhar onde geralmente desviamos. Não há espetáculo. Há intimidade. Há presença. Cada pintura é quase uma confidência. Um pedaço de tempo suspenso, onde o olhar não é dirigido.
Celio Amorth pertence a uma geração de artistas que não busca impressionar pelo virtuosismo, mas por aquilo que reverbera, lentamente, intimamente, eticamente. Sua pintura é um chamado ao retorno. Um retorno ao corpo, à sensação e à verdade que não precisa ser plena, mas precisa ser honesta.
Porque há artistas que escolhem dominar a forma, e há aqueles que permitem que a forma os atravesse. Celio é dos que se deixam atravessar.
Toque: o gesto suspenso como narrativa
Na obra Toque, Célio nos entrega uma imagem fragmentada, mas profundamente evocativa. A pintura, inspirada no impressionismo refinado de John Singer Sargent, seu artista de referência, revela apenas uma mão feminina segurando levemente o tecido do vestido. Mas o que parece simples, revela-se sofisticado: o gesto, o tecido, o brilho tênue de um bracelete, tudo está carregado de sutileza.
A técnica em óleo, demonstra não só domínio técnico, mas também uma intenção clara de capturar o instante. A pequena escala (12,5 x 23 cm) exige precisão e contenção. Célio não recorre à descrição minuciosa, mas à atmosfera. A leveza do toque, quase imperceptível, fala da delicadeza contida nos detalhes, daquilo que não se grita. A paleta clara, com brancos perolados e tons quentes, reforça o caráter atemporal e íntimo da cena.
A escolha por fragmentar o corpo revela seu interesse em deslocar o olhar do óbvio. Ao invés de retratar o rosto, Célio foca no que quase sempre passa despercebido: o gesto, o detalhe, o silêncio entre uma ação e outra. É ali que sua pintura acontece.

Autorretrato: quando o eu se dissolve no tempo
Autorretrato, Célio propõe um experimento visual e simbólico. Inspirado pelo mestre barroco Rembrandt, o artista se insere dentro da tradição da pintura europeia, assumindo esse peso histórico como parte da própria identidade artística. Mas não o faz como citação ou homenagem direta. Ele se transforma, temporariamente, no próprio Rembrandt, confundindo os limites entre autorretrato, e performance pictórica.
A obra tem atmosfera escura, quase espectral. O rosto emerge da sombra em pinceladas esfumadas, como se estivesse sendo moldado pela própria luz que o toca. O uso do óleo é expressivo e contido, com luz e sombra alternando-se em zonas de definição e apagamento. A figura que surge não é um rosto nítido, mas uma presença em transição, entre séculos, entre gestos.
Ao contrário da tradição do autorretrato como afirmação de identidade, Célio dissolve o eu. O que ele oferece não é um “eu fui”, mas um “e se?”. E se Rembrandt estivesse aqui, e se eu fosse outro, e se o tempo pudesse ser contornado pela pintura? O autorretrato vira enigma.
Ambas as obras, Toque e Autorretrato, revelam não só a maturidade técnica de Célio Amorth, mas sua disposição em trabalhar com o tempo e com a memória como matéria pictórica. O que está exposto são perguntas abertas, gestos que sugerem mais do que explicam.
Visite a mostra e confira de perto a obra!
"De Onde Eu Vim: Reconstruindo Memórias, Recriando Caminhos”
Galeria: UP Time Art Gallery
Curadoria: Marisa Melo
Shopping West Plaza, s/n - Piso I, São Paulo
até 25 de junho de 2025.
Se esta leitura tocou algo em você, convido a seguir explorando o blog. Aqui, compartilho outros textos pensados para artistas, colecionadores e amantes da arte que acreditam no valor do tempo e do gesto com intenção.