Alexandre Pinhel | Ciclos de Recomposição: A Matéria em Estado de Espera
- Marisa Melo

- 2 de jul. de 2020
- 3 min de leitura
Nos processos de Pinhel, o que sobra do consumo ressurge como
forma e pensamento. A criação se torna gesto de consciência.

Quando penso em descarte, me vem à mente o trabalho de Alexandre Pinhel, que é conscientizador. Alexandre Pinhel é um alquimista das Artes. O talento é a pedra filosofal deste engenheiro e artista plástico neo-expressionista, que transforma materiais descartados e resíduos sólidos em arte. Embalagens, espelhos de cerâmica, peças de metal passam por processos químicos, mecânicos ou térmicos e despertam no observador a consciência da preservação e da sustentabilidade.
Seu trabalho é envolvido por um enigma proposto em seus títulos criativos, ao garantir que o material processado não seja identificado pelo observador, que deve se surpreender ao ser informado sobre o segredo. O título deve causar curiosidade e sugerir uma narrativa que será imaginada a partir da apreciação do objeto. Assim, em telas e esculturas, “Histórias Extraordinárias” contadas através de “Conversas Tridimensionais”, constroem a “Mitologia Pessoal” desse Paracelso da arte brasileira.
Pinhel atua na fronteira entre artes visuais e ciência. Sua trajetória como engenheiro o aproxima de experimentações rigorosas: temperaturas, fusões, cortes, composições químicas. Mas, em vez de restringir-se ao cálculo, ele o transforma em experiência estética. As obras emergem como resultado de uma pesquisa que não oculta a materialidade, mas a submete a metamorfoses. A ciência da corrosão, da queima e da fusão se transforma em linguagem poética.
A poética do resíduo
Ao recolher fragmentos que o consumo condenaria ao lixo, ele opera uma inversão: aquilo que foi descartado torna-se protagonista. O gesto não se limita a um discurso ecológico, embora este seja inevitável, mas amplia-se como reflexão sobre a própria condição humana. Assim como os materiais, também os corpos e as ideias sofrem desgastes, fissuras e transformações. O artista captura essa dimensão e a converte em forma.
Em obras como “Aquecimento Global”, a matéria parece vibrar em estado de alerta. O título insere a discussão ambiental de modo direto, mas a composição vai além da denúncia, pois a superfície pintada remete a um planeta em ebulição, metáfora de um mundo em colapso. Já em “Gelo em Chamas”, o paradoxo do título está na contradição visual: a matéria sólida, aparentemente congelada, carrega a chama interna que ameaça dissolvê-la. Essas dualidades são recorrentes em seu trabalho e revelam sua habilidade em provocar desconforto estético sem perder a força plástica.
Esculturas como enigmas
Nas esculturas, como “Rito de Passagem”, a experiência é tridimensional e tátil. O espectador se confronta com formas orgânicas que parecem ossos, fósseis ou corais, mas que na verdade nasceram de processos industriais, resíduos fundidos e modelados. Há algo de ritualístico nessas peças, como se cada uma fosse um objeto sagrado, um fragmento de mitologia inventada pelo artista. A fragilidade e a dureza se encontram no mesmo corpo escultórico: porosidade e peso, vazio e densidade.
Em “Klintiana”, a referência ao universo de Gustav Klimt aparece na riqueza ornamental e na superfície brilhante, mas transposta para um contexto de reaproveitamento e experimentação material. Não há idealização, mas recriação. A arte de Pinhel se apropria de tradições visuais e as reinterpreta através do gesto experimental.
Pintura digital e narrativa expandida
A dimensão digital de sua produção abre novas possibilidades. Obras como “Mendeleiev por Michelângelo” e “Mozart no País das Maravilhas” são exemplos de como Pinhel articula cultura erudita, ícones históricos e referências literárias em composições que misturam ironia e reverência. O artista opera uma espécie de colagem temporal: personagens clássicos reaparecem deslocados, submetidos a uma estética pop e tecnológica. A ironia não diminui a densidade do trabalho, pelo contrário, expande sua legibilidade e aproxima-o de públicos diversos.
Em “A Fuga”, há um dinamismo cromático que se aproxima do neo-expressionismo e do action painting. A tela pulsa como se fosse resultado de um processo de exaustão física, gesto contínuo e insistente.
Mitologia pessoal e consciência coletiva
Em toda a obra de Pinhel, o que se estabelece é uma mitologia pessoal construída a partir de restos, resíduos e imagens reprocessadas. Não se trata de ornamentar o banal, mas de expor que no banal reside o potencial de transformação. O espectador, ao descobrir que o material-base da obra poderia estar em um aterro, é convidado a rever seu próprio olhar sobre consumo, desperdício e criação.
A consciência ambiental é, indissociável da sua poética. No entanto, o que garante longevidade e relevância à sua obra é a forma como expande o discurso e constrói obras complexas. Ao submeter resíduos a novos estados, demonstra que não existe descarte absoluto, apenas ciclos de recomposição. Bachelard, lembrava que “a criação é sempre o ato de dar forma ao que parecia informe”.
















