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A Ética do Olhar: Aristóteles e o poder da forma

A arte é gesto e consciência (Aristóteles). A forma organiza o caos, o olhar purifica e a emoção encontra equilíbrio. Criar é, antes de tudo, um ato ético.



Imagem com retrato de Aristóteles em fundo escuro, acompanhada de paleta de pintura, pincéis e busto clássico, associando filosofia, arte e ética do olhar.


Para Aristóteles, a arte não é cópia, mas elaboração. Diferente de Platão, que via na criação uma imitação do mundo sensível, Aristóteles reconhece na arte a força da transformação. O artista, para ele, não repete o real, cria uma versão possível, filtrada pela emoção, pelo gesto e pela forma. Através dessa elaboração, a arte cumpre uma função ética: purifica, educa, desperta a consciência. A mímesis deixa de ser uma sombra da ideia para tornar-se um modo de conhecer o mundo.


A catarse aristotélica é uma das ideias mais fecundas da história da estética. No teatro, o espectador se purificava ao ver representadas as paixões humanas. O trágico, o belo e o terrível coexistiam em uma mesma experiência de lucidez. Não se tratava de afastar a dor, mas de compreendê-la. Assim também é a arte: um espaço de transformação interior, onde o que é vivido se torna linguagem. Em cada obra, há uma tentativa de ordenar o caos. E nesse gesto, nasce uma ética, não a moral das regras, mas a ética do olhar.


Essa ética é o que nos ensina a ver. Em um tempo saturado de imagens, o olhar corre o risco de perder a profundidade. Aristóteles já intuía que ver é mais do que captar formas: é compreender sentidos. No século XXI, o excesso visual banaliza o impacto estético; o espectador, distraído, consome imagens como quem respira sem notar o ar. A arte, quando verdadeira, obriga a pausa. Ela devolve o olhar à sua função ética: a de se responsabilizar pelo que vê.


Na arte contemporânea, essa relação é evidente. Obras que nos confrontam com a fragilidade, com a violência, com a memória ou com o corpo não buscam o agrado, mas a consciência. Marina Abramović, ao colocar seu corpo em risco, transforma a dor em experiência compartilhada. William Kentridge revisita a história da África do Sul para revelar a culpa e a complexidade da memória. Grada Kilomba desmonta a estética colonial e transforma o ato de ver em um exercício de reparação. Em todos esses gestos, o olhar se torna pensamento moral. Ver é, também, um modo de agir.


O artista contemporâneo que compreende Aristóteles não busca o ideal da beleza, mas o equilíbrio entre emoção e forma. É esse equilíbrio que sustenta o que é duradouro. A forma, em Aristóteles, é o princípio que organiza a matéria, o que dá inteligibilidade ao mundo. Da escultura clássica às instalações imersivas, o que muda é apenas o suporte; o gesto permanece: fazer da arte um modo de ordenar o sensível.


Pensar a forma é pensar a liberdade. A obra, ao ganhar contorno, deixa de pertencer apenas ao artista e passa a dialogar com o público, com o tempo e com o mundo. A ética do olhar nasce justamente nesse intervalo entre quem cria e quem contempla. A responsabilidade é mútua: o artista oferece a forma, o espectador oferece a observação. Ambos são transformados pelo encontro.


Aristóteles dizia que a virtude está no meio-termo. A arte, talvez, seja o exercício supremo dessa virtude: equilibrar razão e emoção, instinto e pensamento, impulso e estrutura. A forma não sufoca o gesto. O olhar ético é aquele que reconhece a medida e compreende o excesso, sem se perder em nenhum dos dois.


Em tempos de polarização, a arte aristotélica é quase um gesto político. Propõe a a harmonia, e recupera a ideia de que o belo e o bom ainda podem coexistir, não como estética moralista, mas como consciência. O artista que se orienta por essa visão não cria apenas objetos, cria mundos possíveis, espaços de reconciliação entre o pensamento e a emoção.


O olhar que compreende essa ética deixa de ser neutro. Ver é sempre um ato de escolha: olhar é reconhecer o outro, é conceder existência. Quando uma obra nos afeta, ela desperta nossa humanidade adormecida. Essa é a catarse de hoje, mais íntima, mas ainda profundamente necessária.


Aristóteles ensinou que a arte imita a vida não para repeti-la, mas para compreendê-la. A ética do olhar é essa capacidade de ver o humano em tudo o que existe. No fundo, a arte continua sendo o laboratório da alma, o lugar onde o pensamento se faz visível e a forma devolve sentido ao mundo.



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