O Pensamento Contemporâneo: Nietzsche, Deleuze e a criação como força
- Marisa Melo

- 17 de nov.
- 7 min de leitura
Para Nietzsche e Deleuze, criar é afirmar a vida. A arte não reflete o mundo, ela o reinventa. Pensar e criar tornam-se o mesmo gesto: a força de existir.

A arte não explica o mundo, ela o recria. Essa é talvez a ideia mais radical legada por Friedrich Nietzsche e Gilles Deleuze ao pensamento contemporâneo. Ambos compreenderam a criação como um ato de afirmação: não representar o que existe, mas gerar novas formas de vida, pensamento e sensibilidade. A arte, nesse horizonte, deixa de ser um espelho e se torna uma força, um campo de intensidade, invenção e risco.
Nietzsche foi o primeiro a situar a arte no centro da vida. Contra a rigidez da moral e a tradição metafísica ocidental, ele viu na criação o gesto mais alto da liberdade humana. “Temos a arte para não perecermos da verdade”, escreveu. Para ele, a arte não é fuga, é enfrentamento. É o espaço onde o homem afirma a existência apesar da dor, da impermanência e do absurdo. O artista é o que diz sim ao mundo, mesmo quando o mundo não responde.
A filosofia nietzschiana nasce do embate entre duas forças: o apolíneo e o dionisíaco. O apolíneo representa a ordem, a medida, a forma; o dionisíaco, o caos, o impulso, o êxtase. A grande arte, para Nietzsche, é aquela que contém ambas, equilibrando estrutura e vertigem. É o instante em que o ser humano, ao criar, se reconcilia com o próprio destino. No fundo, o que ele propõe é uma ética da criação: viver como quem compõe uma obra, transformar o sofrimento em potência e o pensamento em dança.
Séculos depois, Deleuze retomou essa herança e a levou ao extremo. Para ele, pensar é criar. O filósofo francês via na arte o lugar onde o pensamento escapa das categorias fixas e se torna fluxo, multiplicidade, vibração. O artista, o filósofo e o cientista partilham uma mesma tarefa: inventar conceitos, afetos e perceptos que revelem novas possibilidades de existir. A criação, nesse sentido, é sempre um gesto político e ontológico, ela modifica o modo de ser no mundo.
Em O que é a filosofia? Deleuze escreve que o artista é aquele que produz perceptos e afetos, enquanto o filósofo produz conceitos. Ambos constroem mundos. A diferença é apenas o meio. A arte pensa através da matéria, a filosofia pensa através da ideia. O ponto de encontro entre ambos é o mesmo: a criação como forma de pensamento. É por isso que, em Deleuze, a estética é modo de existir. Criar é afirmar a vida em sua imprevisibilidade.
Essa visão amplia o papel da arte contemporânea. O artista deixa de ser intérprete da realidade e se torna criador da realidade. Cada obra é um acontecimento, uma dobra do pensamento. O corpo, a cor, o som e o espaço deixam de servir à representação e passam a gerar experiências inéditas. A arte deixa de responder e começa a perguntar. É a força de produzir o que ainda não existe.
Nietzsche dizia que o verdadeiro artista é aquele que cria valores. A arte, quando autêntica, não reproduz ideologias, mas propõe novas formas de ver e sentir. É nesse sentido que ela se torna filosofia ativa. O artista, ao criar, também pensa; ao pensar, também transforma. Cada gesto de criação é um ato de resistência ao niilismo, a recusa em aceitar o vazio como destino.
Para Deleuze, essa potência criadora é o que ele chama de “máquina desejante”: um sistema em movimento, sem centro fixo, que gera conexões e fluxos. O artista, nesse contexto, é um produtor de intensidade. Suas obras são máquinas de sensações, não porque emocionam, mas porque nos fazem sentir o pensamento. Francis Bacon, por exemplo, ao distorcer o corpo, não representa o horror, ele o faz vibrar. Sophie Calle, ao transformar a intimidade em narrativa, cria um espaço entre o real e o imaginado. Olafur Eliasson, ao lidar com a luz e a natureza, devolve ao público o espanto de existir. Todos, de algum modo, afirmam a vida como criação.
O que une Nietzsche e Deleuze é a recusa do pessimismo e da imobilidade. Ambos compreendem a arte como força vital. Criar é um modo de existir que não se submete ao ressentimento nem ao desespero. O artista é aquele que suporta o mundo e o recria, que transforma o peso da existência em gesto de leveza. A arte é o corpo visível dessa superação.
Pensar com Nietzsche e Deleuze é compreender que a arte não busca consolo, busca lucidez. Ela revela que a vida é imperfeita e, ainda assim, digna de afirmação. O artista contemporâneo que adota essa visão se liberta da obrigação de agradar ou explicar. Cria porque precisa, porque cada obra é uma tentativa de pensar o impensável. A arte torna-se, assim, uma filosofia em ato, uma prática de pensamento encarnado.
O pensamento contemporâneo que nasce desses dois autores nos conduz a uma ética da criação. Criar é dizer sim à vida. É afirmar o mundo não como ele é, mas como pode ser. O artista se torna o novo filósofo, não aquele que busca verdades, mas aquele que inventa possibilidades. A obra deixa de ser um objeto e se torna acontecimento. O pensamento, em movimento, encontra na arte sua forma mais livre.
Talvez essa seja a verdadeira força da criação: transformar a consciência em energia, o pensamento em corpo e a arte em vida. Nietzsche chamou isso de amor fati, o amor ao destino. Deleuze o traduziu como alegria ativa. Ambas as ideias se encontram na mesma direção: criar é aceitar o fluxo do tempo e, ainda assim, continuar inventando. A arte, como a filosofia, é um modo de continuar dizendo sim.

Série sobre Filosofia e Arte
Recortes Contemporâneos – Curso Ministrado por Marisa Melo | Duração: 6 meses
Pensar a arte é pensar o mundo. Nesta série, proponho um percurso entre filosofia, estética e criação contemporânea. A partir de Platão, Sócrates, Aristóteles e outros pensadores fundamentais, o curso investiga como as ideias perpassam a história da arte e moldam o olhar do presente.
Durante seis meses, os encontros aprofundam a relação entre pensamento e imagem, ética e forma, beleza e verdade, temas que permanecem centrais para compreender a arte contemporânea. Cada módulo propõe reflexões, leituras e debates sobre artistas, períodos e conceitos que unem o fazer artístico ao pensamento filosófico.
Uma imersão no tempo e no olhar: um espaço para pensar, criar e compreender o papel da arte como experiência de conhecimento.

Marisa Melo é galerista, curadora, artista plástica, gravadora, designer gráfico, ilustradora, fotógrafa e pesquisadora independente dedicada à arte contemporânea e clássica há mais de trinta anos.
Fundadora e diretora da UP Time Art Gallery, em São Paulo, já curou inúmeras exposições no Brasil e na Europa, mentorou mais de 4.000 artistas e coordenou mais de 40 projetos culturais voltados à formação e difusão da arte.
Como escritora e ensaísta, desenvolve uma reflexão contínua sobre o lugar da arte no mundo contemporâneo, unindo filosofia, estética e prática criativa.
Sua atuação transita entre o olhar crítico e o gesto artístico, propondo uma curadoria que pensa, e uma filosofia que se faz visível. Em Recortes Contemporâneos, série que inspira este curso, Marisa convida o público a refletir sobre o tempo, a beleza e a arte como forma de pensamento.
Duração: 6 meses | Formato: híbrido (presencial e online)
Carga horária: 24 encontros quinzenais
Módulo 1 – O Belo como Verdade: Platão e o impulso de compreender o mundo
Eixo filosófico: O Belo e a Ideia: a arte como caminho de ascensão ao conhecimento.
Conteúdo:
• O conceito de mímesis e a noção de beleza ideal.
• A diferença entre aparência e essência.
• A arte como revelação da verdade.
Diálogo artístico: Renascimento, classicismo e a noção de harmonia.
Artistas-referência: Leonardo da Vinci, Botticelli, Agnes Martin.
Objetivo: Compreender a herança platônica na arte e refletir sobre a beleza como forma de pensamento.
Módulo 2 – A Ética do Olhar: Aristóteles e o poder da forma
Eixo filosófico: A poiesis como ação criadora e a arte como conhecimento
prático.
Conteúdo:
• A estética aristotélica e a catarse.
• A importância da forma e da narrativa.
• O gesto criador como equilíbrio entre razão e emoção.
Diálogo artístico: Do teatro grego à arte conceitual.
Artistas-referência: Marina Abramović, William Kentridge, Grada Kilomba.
Objetivo: Pensar a arte como ato ético e existencial, que transforma tanto quem cria quanto quem contempla.
Módulo 3 – A Vida Examinada: Sócrates e o autoconhecimento como matéria da arte
Eixo filosófico: O diálogo e a introspecção como método de revelação.
Conteúdo
:• O “Conhece-te a ti mesmo” aplicado ao fazer artístico.
• O processo criativo como investigação interior.
• O artista como consciência do tempo.
Diálogo artístico: Arte autobiográfica, performance e memória.
Artistas-referência: Louise Bourgeois, Tracey Emin, Lygia Clark.
Objetivo: Explorar a criação como extensão da consciência e a obra como espelho filosófico do eu.
Módulo 4 – O Sentido do Ser: Heidegger e a arte como morada do humano
Eixo filosófico: O pensamento ontológico e a noção de desvelamento
(aletheia).
Conteúdo:
• A arte como modo de revelar o ser.
• A diferença entre o útil e o essencial.
• O espaço do ateliê como lugar do pensamento.
Diálogo artístico: Existencialismo, silêncio e materialidade.
Artistas-referência: Alberto Giacometti, Anselm Kiefer, Mira Schendel.
Objetivo: Investigar como a arte acolhe o ser e traduz a experiência humana em matéria.
Módulo 5 – A Experiência Estética: Kant e o juízo do gosto
Eixo filosófico: A arte como experiência sensível e autônoma.
Conteúdo:
• O juízo estético e o prazer desinteressado.
• A autonomia da arte e o nascimento do artista moderno.
• Da contemplação à participação.
Diálogo artístico: Modernismo e vanguardas.
Artistas-referência: Paul Cézanne, Piet Mondrian, Tarsila do Amaral.
Objetivo: Discutir a transição da arte como representação para a arte como experiência de liberdade.
Módulo 6 – O Pensamento Contemporâneo: Nietzsche, Deleuze e a criação como potência
Eixo filosófico: A arte como afirmação da vida e campo de força criadora.
Conteúdo:
• Nietzsche e a estética do trágico.
• Deleuze e a ideia de arte como pensamento não verbal.
• O artista como criador de mundos possíveis.
Diálogo artístico: Pós-modernidade, fluxo e desconstrução.
Artistas-referência: Francis Bacon, Sophie Calle, Olafur Eliasson.
Objetivo: Compreender a arte contemporânea como campo de liberdade e pensamento em movimento.
Encerramento – Recortes do pensamento: a arte como forma de filosofia
Síntese dos seis módulos com leitura de obras, debate coletivo e apresentação final dos participantes.Cada aluno escolhe um tema ou artista e desenvolve uma reflexão crítica ou poética sobre o diálogo entre arte e filosofia.
Material complementar:
• Leituras orientadas de fragmentos filosóficos.
• Textos curatoriais de Marisa Melo.
• Obras comentadas e estudos de caso.
• Biblioteca digital com acervo visual e referências em PDF.
Faça sua inscrição: contato@marisamelo.com


