História de Todas Nós, Mulheres: Um fio contínuo entre o ontem e o agora
- Marisa Melo
- há 4 dias
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Há histórias que não se calam. Elas ecoam por entre as paredes da memória, sussurram em fotografias antigas, vibram nas mãos que bordaram destinos e nas vozes que, mesmo abafadas, jamais se renderam ao silêncio. O projeto História de Todas Nós, Mulheres nasce desse território sensível, onde a palavra se entrelaça com a vivência e a arte se transforma em veículo de cura, ou melhor, de confidência. Porque aqui, cada relato pulsa com a intimidade de quem ousou existir com coragem.
Escrever essas histórias tem me atravessado de um jeito que ainda estou tentando nomear. Às vezes é como sentar diante de uma fogueira, onde vozes se acendem uma a uma, me contando segredos de outros tempos — mas que, de algum modo misterioso, vivem em mim. Escutá-las é um ritual: eu me calo, ouço, sinto, e só então escrevo. E nesse processo, percebo que não sou apenas uma ponte entre uma história e o papel. Sou também o território onde ela repousa, um instante antes de seguir.
É uma experiência íntima e delicada. Porque quando uma mulher decide contar sua travessia, ela não entrega apenas fatos, ela oferece sua alma em estado bruto. E eu recebo tudo isso com o mais absoluto respeito, como quem segura algo sagrado nas mãos.
Olhar para essas histórias é, de fato, escutar o som do tempo. Mulheres que caminharam antes de nós deixaram marcas. E não me refiro apenas às figuras consagradas dos livros de história, embora elas também estejam presentes. Falo das anônimas, das que resistiram no silêncio das cozinhas, das escolas rurais, dos leitos hospitalares e das fábricas. Das que fizeram da sobrevivência uma arte e da dor, matéria-prima para a transformação.
Pensemos em Maria Quitéria, que no século XIX trocou o vestido pelo fardamento e enfrentou o campo de batalha pela independência do Brasil. Em um tempo em que mulheres eram confinadas ao lar, ela ousou assumir uma identidade masculina para lutar. Um gesto audacioso: ela queria liberdade — para todas nós.
E o que dizer de Dandara dos Palmares? Guerreira, estrategista, mulher negra que comandou quilombos, desafiou os grilhões da escravidão e fez da floresta sua trincheira. Dandara sonhava com a liberdade, ela a arquitetava, com a precisão de quem sabia que liberdade se conquista todos os dias.
Décadas mais tarde, uma outra mulher ousaria desobedecer os manuais de sua época: Nise da Silveira, alagoana, médica, psiquiatra, que preferiu a escuta ao choque, a arte ao confinamento. Em pleno século XX, quando a loucura era silenciada com eletrochoques e lobotomias, Nise acendeu uma vela no porão da psiquiatria e enxergou ali, onde todos viam ruína, vastos territórios de alma. Criou, no Rio de Janeiro, o setor de Terapêutica Ocupacional do Hospital Pedro II, onde a arte foi resgatada como caminho de expressão para os internos. Com tintas e argila, aqueles "invisíveis" voltaram a existir. Não precisou carregar nenhuma bandeira para defender a dignidade feminina: ela mesma foi sua própria bandeira. Sua contribuição à sociedade foi silenciosa e revolucionária.
E como não lembrar de Frida Kahlo? Uma mulher cuja dor nunca foi silenciada, mas transformada em arte pungente e visceral. Frida não pintava flores para agradar, ela pintava a ferida aberta, o espinho cravado, o amor que arde, o corpo que rompe e resiste. Deitada em sua cama, com a coluna estilhaçada e a alma exposta, ela construiu um universo onde a fragilidade e a força convivem em estado de fúria e beleza. Frida nos ensinou que é possível florescer mesmo nos terrenos mais hostis. Que a arte pode ser espelho, grito, escudo, altar. E que viver, apesar de tudo, é um ato de rebeldia sagrada.
Essas vozes do passado não nos soam distantes, ao contrário, ecoam vivas nas tantas mulheres que hoje seguem abrindo clareiras com suas próprias mãos. Basta escutar a história de Karla Lessa: cinco anos mergulhada na sombra densa da depressão, agravada pela dura convivência com a doença de Crohn. Sob o peso de um tratamento severo, entre medicamentos que drenavam sua vitalidade e o confinamento forçado do corpo, ela encontrou abrigo na arte. Da cama, nasceram mais de cem obras. E assim compreendemos que a resistência segue viva, só que, agora, com novas formas. A luta persiste, mas seus instrumentos mudaram: se antes era a espada, hoje é o pincel, o microfone, o código, o útero que pare ideias e revoluções silenciosas.
Veja Rossana Covarrubias. No ápice da pandemia, enfrentava um vendaval íntimo: sua mãe, diagnosticada com Alzheimer, exigia atenção e cuidado integral. Ao mesmo tempo, seu filho, aos vinte anos, recebia o diagnóstico de esclerose múltipla. Tudo isso em um momento em que Rossana também enfrentava o desemprego, um cenário desolador que muitos não suportariam. Mas ela, com a força silente de quem carrega o mundo no peito, seguiu. Reinventando os dias com o pouco que tinha, costurando amor no lugar da ausência, esperança no lugar da estabilidade. Essa é a fibra da mulher que queremos exaltar: não a que nunca cai, mas a que, mesmo caída, oferece colo.
A cada depoimento, eu me dou conta de que estamos todas, de algum modo, falando das mesmas coisas: do desejo de pertencimento, da busca por sentido, da vontade de ser ouvida e, sobretudo, da necessidade de transformar dor em potência. São encontros que me atravessam, me ensinam e, por vezes, me curam também. Porque a escuta também é um espelho.
Sim, conquistamos direitos, acessos, voz pública. Mas também somos confrontadas com novos desafios: a exaustão das multitarefas, o adoecimento psíquico em um mundo acelerado, a sobrecarga da mulher que trabalha, cuida, sente culpa, planeja, se exige. Vivemos conectadas, mas muitas vezes nos sentimos sozinhas. É nesse ponto que precisamos nos lembrar de que a verdadeira revolução talvez não esteja na força bruta, mas sim na força sensível. A que acolhe, intui, percebe. A mulher é forte não apesar da sua delicadeza, mas por causa dela. Porque sua delicadeza é ação, presença, afeto.
Este projeto é também um altar. Um lugar onde colocamos as memórias em evidência, com respeito e beleza, como quem oferece flores às mulheres que vieram antes de nós, aquelas que abriram caminhos, mesmo sem saber que estavam fazendo história. Porque cada mulher que narra sua travessia não está apenas falando de si: ela está construindo pontes com outras tantas que virão. É preciso olhar para essas narrativas como uma tapeçaria. Cada fio é único, mas todos se entrelaçam em um desenho maior. Um padrão que não se revela de imediato, mas que vai surgindo aos poucos, conforme abrimos espaço para escuta e afeto.
Hoje, mais do que nunca, precisamos dessas histórias. Não como um acervo do passado, mas como uma bússola para o futuro. Precisamos lembrar que resistir não é só lutar: é também dançar, rir, parir, criar, bordar, escrever, calar e recomeçar. Precisamos, sobretudo, continuar.
Porque a história de todas nós, mulheres, ainda está sendo escrita. E cada palavra importa.