Do concreto ao espiritual, a arte de Ritamar
- Marisa Melo
- 7 de fev.
- 4 min de leitura
Atualizado: 24 de jun.

Durante muito tempo, acreditou-se que a arte devia se afastar da prática didática, como se ensinar limitasse a liberdade criativa. Criou-se uma divisão artificial entre quem cria e quem transmite, como se esses campos fossem incompatíveis. No entanto, artistas que se formaram no cruzamento entre educação e produção visual mostram o contrário: que o gesto criativo pode nascer da troca cotidiana, da sala de aula, da convivência com o outro.
Essa compreensão atravessa a trajetória de Ritamar. Nascida em Flores da Cunha, na Serra Gaúcha, ela construiu uma vida em que criar e ensinar fazem parte do mesmo gesto. Desde cedo, seu olhar atento e suas mãos inquietas buscavam traduzir o mundo ao redor em forma. A arte nunca foi apenas expressão. Foi modo de viver, de organizar o pensamento, de se comunicar com o outro.
Sua trajetória começou nos palcos, com a presença cênica moldando sua forma de expressão. Logo a literatura se tornou um novo território, onde as narrativas e as poesias passaram a ocupar espaço ao lado da performance. Mas foi nas artes visuais que encontrou amplitude. Ali, a palavra ganhou cor, o gesto se transformou em imagem, e a criação ganhou estrutura.
Formada em Magistério, Ritamar atuou por mais de duas décadas como professora de artes no ensino fundamental. Seu trabalho com crianças e adolescentes nunca se limitou à sala de aula. Organizou mostras, montou exposições, estimulou processos criativos e fez da escola um espaço de construção visual. Sua prática docente sempre esteve alinhada à experiência sensível. Não havia ruptura entre ensinar e criar, porque para ela esses movimentos são complementares.
A decisão de aprofundar sua formação no curso de Artes Visuais da Universidade de Caxias do Sul veio como desdobramento de um percurso já em andamento. Ali, consolidou conhecimento técnico e teórico, alinhando método com consistência. Suas obras refletem esse trânsito. Há liberdade nas formas, mas também precisão no uso dos materiais. A aquarela, o nanquim, a tinta acrílica, cada escolha carrega intenção.
Ritamar acredita que arte não se esgota no ateliê, nem na moldura. Ela precisa circular, provocar, gerar contato. Por isso, levou sua produção para murais e painéis espalhados pela cidade. Espaços públicos onde a arte passa a ser encontro. Suas intervenções visuais são acessíveis, mas não simplificadas. Há a mesma densidade do que é feito com verdade.
Hoje, sua produção mantém esse equilíbrio entre técnica e experiência. O que ela cria não vem do acaso, mas de uma vivência longa com os materiais, com as pessoas e com o tempo da educação. Ritamar não separa arte da vida. Cada obra é resultado de processos construídos com cuidado, e cada processo parte do princípio de que o outro, o aluno, o espectador, a cidade, também faz parte da imagem.
Como escreveu Lygia Clark, uma obra só se completa no contato. Ritamar compreende essa relação como parte essencial do fazer artístico. E é justamente por estabelecer esse vínculo real com o outro que continua atual, necessária e viva.

Outra frente de atuação artística se deu por meio de sua participação na tradicional confecção de tapetes de serragem para a celebração de Corpus Christi. Durante anos, Ritamar esteve envolvida nesse processo coletivo, unindo prática visual e experiência comunitária, em um gesto que articula fé e comunidade.
Sua produção foi reconhecida em diversas exposições individuais e coletivas, tanto em Caxias do Sul quanto em outras cidades do Brasil e do exterior. Um dos marcos de sua trajetória foi a mostra Instantes do Amanhecer da Vida, que reuniu mais de 500 assinaturas no livro de visitas, um dado que, mais do que números, revela o alcance de sua obra e sua capacidade de criar vínculo real com quem observa.



Durante décadas, o debate entre figuração e abstração dividiu linguagens e públicos no campo da arte. Mas há artistas que recusam esse limite, não por indefinição, mas por domínio. Ritamar é uma delas. Sua produção percorre técnicas, períodos e abordagens com liberdade. Ela cria sem precisar se enquadrar. Sua pintura é sustentada por repertório, pesquisa e clareza de intenção.
Ritamar transita entre aquarela, lápis de cor, pastel seco e oleoso, guache, acrílica, óleo, colagem e texturas. Cada técnica é tratada como meio de experimentação. Nada é decorativo, tudo é funcional ao que deseja investigar. A inquietação criativa a conduz por diferentes caminhos, mas há uma constante que atravessa sua obra: a presença do feminino. Não como tema ilustrado, mas como força interna. Suas figuras exploram o misticismo, o interior da mulher, o que pulsa sem alarde. Há camadas, mas também materialidade. E a cor é elemento-chave nesse processo.
O azul profundo, o violeta carregado, o amarelo que ocupa com firmeza, tudo isso constrói atmosferas que não apenas compõem, mas comunicam. A cor, para Ritamar, é corpo. Não serve de fundo, sustenta a estrutura da obra.
Sua trajetória se organiza em fases. Cada uma corresponde a um momento de transformação, tanto artística quanto pessoal. Quando mergulhou na abstração, o gesto se libertou. As formas se dissolveram, a tinta ganhou autonomia, e a imagem passou a ser conduzida pela resposta do próprio processo. A obra deixou de representar e passou a sugerir. O campo visual se expandiu em atmosferas táteis, quase sensoriais.
Essa abertura ao acaso controlado revela outro traço marcante: sua relação com o simbólico. Ritamar brinca ao dizer que é "quase uma bruxa", e talvez essa definição seja precisa, não no sentido místico superficial, mas na maneira como estrutura o etéreo em imagem. Suas pinturas funcionam como portais. A tela é passagem. E a cada novo trabalho, há entrega, tentativa, deslocamento.
Sua pintura não aponta para uma resposta. É construída por perguntas, por camadas que se acumulam sem a obrigação de encerrar sentido. Essa abertura, somada à entrega ao processo, é o que torna sua obra viva, pulsante e inesgotável.





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