Molduras: a pele silenciosa da obra
- Marisa Melo

- 6 de jun. de 2022
- 3 min de leitura
Atualizado: 18 de set.

A moldura sempre ocupou um lugar ambíguo na história da arte. Vista muitas vezes como acessório, detalhe ornamental ou simples proteção, sua função foi subestimada por séculos. No entanto, quando observamos o percurso histórico das imagens, percebemos que a moldura não é apenas limite, mas linguagem. Ela participa da obra, interfere na recepção, cria sentidos e, em muitos casos, define o modo como olhamos para um quadro.
Nos séculos XVII e XVIII, por exemplo, a moldura dourada, esculpida com minúcia, tornou-se símbolo de poder e refinamento. Era menos uma questão de funcionalidade e mais de afirmação: a pintura, envolta por arabescos e folhas de acanto, projetava prestígio. Já no século XIX, com a industrialização e o crescimento das cidades, esse universo artesanal se transformou. Molduras antes talhadas à mão passaram a ser produzidas em série, com ornamentos moldados em gesso. Essa mudança não apenas alterou a estética, mas também refletiu uma nova lógica cultural: a ascensão da classe média e a padronização dos gostos. A moldura se tornou produto de consumo, replicando estilos do passado como forma de atender a uma demanda cada vez maior.

Não foram apenas os colecionadores ou comerciantes que ditaram essas mudanças. Os próprios artistas intervieram ativamente nesse debate. Os impressionistas, inconformados com as regras rígidas do Salão de Paris, buscaram reinventar também a apresentação de suas obras. Camille Pissarro, em 1877, chegou a expor vinte e duas pinturas em molduras brancas, influenciado pelos escritos de Eugene Chevreul sobre o impacto das cores. Mary Cassatt ousou ainda mais, exibindo trabalhos em molduras verdes e vermelhas, escolhidas justamente para acentuar os contrastes cromáticos de suas telas. O gesto era claro: questionar a moldura dourada como símbolo de tradição e propor que o contorno dialogasse diretamente com a paleta e a atmosfera da obra.
Esse histórico revela que a moldura não é neutra. Ela pode reforçar, contradizer ou até mesmo disputar protagonismo com a obra que circunda. É por isso que, na prática curatorial, a escolha da moldura exige o mesmo cuidado que a seleção da própria obra. Uma tela pequena pode ganhar relevância quando envolta por um suporte robusto, enquanto uma pintura monumental pode ser enfraquecida por uma moldura excessiva. A decisão deve considerar a paleta de cores, o espaço expositivo e, sobretudo, o discurso que se deseja construir.

No século XX, muitos movimentos artísticos abandonaram a moldura, como gesto de ruptura. O quadro passou a ser pensado não mais como janela para outro mundo, mas como objeto em si mesmo. A ausência de moldura enfatizava essa autonomia. Ainda assim, a questão nunca deixou de existir. Se antes a moldura dourada era índice de nobreza, agora sua ausência tornou-se índice de modernidade. O que permanece é a constatação de que, em qualquer época, esse elemento aparentemente secundário carrega significados.
Hoje, ao pensar uma moldura, não estamos apenas escolhendo um acabamento. Estamos decidindo como a obra se apresentará, como será percebida e até como será lembrada. A moldura é o espaço liminar entre o mundo da imagem e o mundo real. É um convite à contemplação, um recorte que sinaliza: aqui está algo digno de ser observado com atenção.
Por isso, escolher a moldura adequada não é só um gesto estético. É um gesto ético de respeito ao trabalho do artista e ao olhar do público. Ela traduz a relação entre obra, espaço e tempo, inserindo a pintura em uma atmosfera que pode ser de solenidade, de intimidade ou de ruptura. Mais do que envolver, a moldura adiciona, protege e revela.
E talvez seja justamente nessa aparente condição de detalhe que resida sua força. A moldura não compete com a obra, mas a acompanha, como pele silenciosa que respira junto com ela. É nesse diálogo que descobrimos que nenhuma moldura é neutra e que cada escolha molda, no sentido mais profundo, a experiência estética.


