'Assim como o café também nos transformamos em pó' de Henrique Diogo
- Marisa Melo

- 1 de fev. de 2024
- 2 min de leitura
Atualizado: 16 de mai.

Há obras que não se apressam, que não precisam narrar de imediato. Elas apenas estão. E, estando, se impõem pela presença que silenciosamente ocupa o olhar. Assim como o café também nos transformamos em pó, obra acrílica sobre tela de 90x60 cm, é uma dessas. Criada por Henrique Diogo, artista autodidata que constrói sua linguagem visual a partir de a partir de um repertório sensível.
A estrutura da composição é marcada por um ritmo geométrico, quase cerimonial. O olhar caminha por blocos de cor que se entrelaçam, formando uma espécie de tapeçaria viva onde nada é por acaso. Vermelhos densos, verdes em gradações terrosas, negros como sombra de raiz. A paleta, vibrante, conversa com a terra, com a planta, com o fruto e com aquilo que não se nomeia mas se intui. O café está presente como corpo, mas também como tempo. Como ciclo que começa na semente, passa pelo fogo e retorna ao pó.
Feita para o espaço Art Café, em Poços de Caldas, a obra carrega o espírito do lugar. Mas transcende a encomenda. Ela ultrapassa o decorativo e se aproxima da meditação. Há algo de rito, algo de memória, algo de despedida nessa pintura. O título, quase uma sentença bíblica, remete à nossa matéria efêmera. Ao destino que todos compartilhamos com a terra, com o café, com tudo que nasce, se transforma e um dia retorna.
A escolha de Henrique por uma linguagem abstrata não afasta, pelo contrário. Ela abre. Permite que o observador não apenas compreenda, mas participe. Cada cor, cada forma, cada repetição de padrão nos conduz por uma travessia simbólica. É a vida representada sem figura humana, mas cheia de humanidade. O pó aqui não é fim, é passagem. É lembrança de que até o mais simples grão carrega a potência de um destino.
E ainda há o café. A xícara que acompanha silêncios, encontros, lutos e alegrias. A bebida que une e sustenta. Henrique entende esse gesto e o eleva. Sua pintura é, também, uma homenagem ao cotidiano que nos sustenta. Àquilo que nos dá pausa. Ao calor que se segura entre as mãos. Ao aroma que nos devolve o chão quando o mundo gira demais.
Assim como o café também nos transformamos em pó não é uma obra para ser compreendida em um instante. É para ser respirada. Para ser lembrada. Ela nos fala de tudo aquilo que um dia foi semente e que, um dia, voltará à terra. E nos recorda, com elegância, que mesmo o que desaparece, permanece.


