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A linguagem como destino: Guimarães Rosa e o sertão que nunca acaba

Atualizado: 20 de jul.


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“Viver é muito perigoso.” A frase de Grande Sertão: Veredas não é apenas a mais citada, mas a mais precisa. Em uma única linha, Guimarães Rosa dissolve a ideia de que literatura é decoro ou entretenimento. O que ele oferece é o avesso da neutralidade: um projeto narrativo em que a linguagem não acompanha a realidade, mas a recria até torná-la irreconhecível. Escrever, para Guimarães Rosa, é torcer a língua até ela parir o mundo de novo.


Grande Sertão: Veredas é um campo de batalha linguístico onde o narrador Riobaldo fala para não explodir. Fala para não enlouquecer. Fala para sobreviver ao que viu e ao que não entendeu. O livro não se constrói sobre enredo, mas sobre um fluxo narrativo que mistura oralidade, erudição, filosofia e invenção vocabular. É um sertão onde o tempo não corre, reverbera. Onde o real é impregnado por fábulas, superstições, pactos com o diabo e um amor que não pode dizer seu nome.


Guimarães Rosa não é um regionalista. Seria raso demais classificá-lo assim. Ele se apropria do sertão não como espaço geográfico, mas como território metafísico. Um lugar onde a existência humana é levada aos seus limites. Seus personagens não são caricaturas de um Brasil arcaico, mas figuras complexas, contraditórias, rasgadas por dilemas éticos, morais e existenciais. Riobaldo é o narrador de uma odisseia interior, e sua travessia não se dá apenas pelas veredas físicas, mas pelos labirintos da linguagem e do pensamento.


A radicalidade de Guimarães Rosa está em colocar a linguagem como personagem central. Sua escrita exige esforço, atenção, pausa. O leitor não consome Guimarães Rosa impunemente. Ele precisa aprender a ler de novo, a suportar o deslocamento entre o que se diz e o que se revela. Ele sabia que a linguagem não é um veículo, é um enigma. E que cada palavra carrega um peso ético. Por isso, seu vocabulário é híbrido, impuro, misturado como o Brasil que ele compreendeu melhor do que qualquer sociólogo.


Há em Grande Sertão uma preocupação com o indizível. Com aquilo que não cabe em nenhuma gramática, mas que exige ser nomeado. Riobaldo tenta, repete, volta atrás, reformula, inventa palavras porque sabe que a verdade não está dada. Está na busca. Está na repetição cansada de quem tenta se explicar a si mesmo. Por isso o livro parece circular, mesmo quando avança. Porque o sentido nunca está no final, mas no percurso.


A obra também é uma meditação sobre o bem e o mal. Mas Rosa não oferece respostas. Ele complica. Questiona a existência do diabo, duvida de Deus, põe em xeque a justiça. Tudo isso sem recorrer a discursos didáticos. Sua filosofia é a do espanto. A do tropeço. A de quem sabe que nenhuma ideia se sustenta sem a prova da vida. E a vida, como ele mostra, não tem lógica. Tem vereda.


Ler Guimarães Rosa hoje é reconhecer a pobreza de parte da produção contemporânea que despreza a linguagem como campo de invenção. É ser lembrado de que não existe literatura relevante sem risco formal. Sem desvio. Sem desconforto.


Grande Sertão: Veredas continua sendo um desafio para os leitores apressados. E talvez esse seja seu maior mérito: obrigar o leitor a parar, a se perder, a reconsiderar tudo o que achava saber sobre narrativa, sobre identidade, sobre a própria língua.


Guimarães Rosa escreveu como quem traduzia o que ainda não existia. Ele fundou uma literatura que não imita a vida, mas a desorganiza. Criou um idioma que não cabe em nenhuma cartilha, porque seu compromisso não era com a norma, mas com o mistério. E o mistério, como o sertão, nunca se esgota. Nunca se entrega. Nunca se explica. Só se percorre.



Marisa Melo

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