Onde Estava a Arte: Capas de Discos das Décadas de 60, 70 e 80
- Marisa Melo
- há 7 horas
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Antes de clicar para ouvir, era preciso olhar. E muitas vezes, era o olhar que abria o ouvido. As capas de discos foram, durante boa parte do século XX, portais sensoriais para a música, imagens que não apenas ilustravam, mas criavam atmosfera, moldavam imaginário, antecipavam a experiência.⠀Entre as décadas de 60, 70 e 80, o álbum era um objeto completo. A música vinha envolta em papel, vinil, encarte, cheiro de impressão. E a arte da capa não era detalhe. Era linguagem.
A década de 1960: entre o sonho e o manifesto
Nos anos 60, o mundo parecia dividido entre esperança e contestação. Era o tempo da contracultura, do psicodelismo, das utopias e do barulho que vinha das ruas. E a arte nas capas de discos acompanhou esse movimento.
O estúdio de design britânico Hipgnosis e artistas como Peter Blake (que criou a capa icônica de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles) não apenas ilustravam os álbuns, criavam narrativas visuais completas. A capa do Sgt. Pepper’s, por exemplo, é uma colagem exuberante de personagens históricos, referências culturais e cores vibrantes. Uma espécie de altar visual da cultura pop em sua expansão mais audaciosa.
Também foi nos anos 60 que a capa de disco começou a romper com o retrato convencional do artista. Psicodelia, ilustração manual, colagens surrealistas, composições tipográficas ousadas, tudo isso se tornou palco para uma nova estética. O design gráfico se misturava à arte visual com liberdade quase total.
Anos 70: a era do conceito, da ousadia e do vinil como artefato
A década de 70 marca o auge do LP como objeto de arte. O disco não era apenas música, era uma experiência estética total. Os álbuns dobráveis (gatefold), as texturas impressas, os recortes especiais, os encartes desenhados à mão, tudo colaborava para transformar cada lançamento em uma espécie de ritual.
Essas capas criaram universos visuais que ajudaram a eternizar álbuns inteiros na memória afetiva de gerações. Hoje, em tempos digitais, revisitá-las é reencontrar o valor da arte feita com intenção, corpo e presença.
Bandas como Pink Floyd, com capas assinadas pelo já lendário Hipgnosis, criaram verdadeiras peças de arte visual. A capa de The Dark Side of the Moon (1973), com seu prisma e feixe de luz, tornou-se um símbolo reconhecido mundialmente, minimalista, elegante, carregado de conceito. Não havia o rosto da banda. Havia ideia, atmosfera.
Foi também nos anos 70 que muitos artistas visuais começaram a ser convidados a criar capas de disco. Andy Warhol, por exemplo, assinou a icônica capa do Sticky Fingers (1971), dos Rolling Stones, com um zíper real que abria a calça jeans impressa. Era arte pop em sua encarnação mais direta e provocativa.
O disco era um objeto-obra, onde arte e som dialogavam em um mesmo plano sensorial. O design gráfico cresceu em complexidade e a fotografia ganhou força como meio de expressão visual sofisticado, indo muito além do retrato promocional.
Acabou Chorare — Novos Baianos (1972)
Design: Paulo Brèves e Fernando LonaTécnica: colagem fotográfica, composição gráfica livre, diagramação analógica
A capa de Acabou Chorare é uma das mais simbólicas da música brasileira. Ela não apenas ilustra um disco, ela respira a contracultura e a comunhão de uma geração que queria viver, criar e cantar de outro modo. A imagem traz os integrantes dos Novos Baianos em uma montagem quase espontânea, com recortes visuais, poses descontraídas, sobreposição de elementos e uma sensação de vida em movimento.
A tipografia em letras irregulares, quase infantis, e o uso de cores e formas quebram a hierarquia tradicional do design gráfico. Tudo ali soa como um diário visual de uma banda que vivia junta, comia junto, compunha em roda e se via como uma pequena comunidade.
Anos 80: o excesso, a performance e a estética da imagem
Nos anos 80, o mundo visual se acelerou. Chegava o videoclipe, o mercado se globalizava e a estética da imagem se tornava espetáculo. Ainda assim, as capas de disco continuaram a ser território fértil para experimentações gráficas e visuais, mesmo com o avanço do CD e a redução do espaço físico disponível.
A iconografia dos anos 80 é marcada por contrastes fortes, neons, figurinos teatrais e uma obsessão pela imagem enquanto identidade. Capas como a de Purple Rain, de Prince, ou Like a Virgin, de Madonna, não apenas vendiam álbuns, criavam personas, narrativas visuais completas.
O uso da fotografia era dramático, carregado de estilo. Cabelos, maquiagem, poses e expressões criavam verdadeiros retratos performáticos. A capa se tornava extensão do palco, da moda, da coreografia. Era, por si só, um pequeno pôster de um espetáculo maior.
Ao mesmo tempo, artistas do underground e do pós-punk apostavam na estética do colapso visual, capas com tipografias cruas, fotocópias, rabiscos e intervenções manuais, como nos álbuns do Joy Division ou Sonic Youth, influenciados por movimentos artísticos como o dadaísmo e o punk visual de Jamie Reid.
A arte como tradução da música
O que une todas essas décadas é o entendimento de que a arte da capa não era apenas complemento. Era conteúdo. Era parte do discurso do artista, da atmosfera do disco, da experiência sensorial.
As capas de disco foram, talvez, o maior espaço de convergência entre artes visuais e música no século XX. Um espaço onde fotógrafos, pintores, designers e músicos criaram juntos, sem que uma linguagem abafasse a outra.
Hoje, em tempos de streaming e miniaturas digitais, essa relação visual com a música se perde um pouco. Mas ainda pulsa, como saudade ou como referência.
Porque a arte, quando verdadeira, deixa marcas. E as capas dos discos daquelas décadas não apenas ilustraram canções, elas também nos ensinaram a olhar.